Matildas transformam Austrália em ‘país do futebol’ na Copa do Mundo

Jogos das Matildas quebram recordes de audiência de TV e mobilizam um país que nunca teve o futebol como esporte popular.

Já se falava antes mesmo de ela começar que essa seria a maior Copa do Mundo de todos os tempos. Seria a primeira edição do torneio com 32 seleções e havia grandes expectativas sobre grandes jogos, ótimos públicos e recordes de audiência. Mas chegando na semifinal, dá pra dizer que esse Mundial já superou todas as expectativas principalmente no aspecto do país sede.

A Austrália reconhecidamente não é um país “do futebol”. Apesar de ser uma nação muito “esportiva”, o futebol em específico nunca foi o seu forte. Mas com o sucesso das Matildas (o apelido da seleção feminina de futebol da Austrália), o cenário aparentemente está em transformação – e isso fica nítido durante a Copa do Mundo.

Só com os jogos da primeira fase do torneio, esta edição já havia superado o público somado de todos os jogos da Copa do Mundo de 2019. Os números chamam a atenção porque, de novo, esse não é um país onde o futebol é muito popular. Na verdade, os esportes que mais atraem a atenção dos australianos são futebol australiano (uma modalidade específica daqui praticada com a bola oval), o rúgbi, o críquete, entre outros. O futebol fica em quinto nessa lista em termos de popularidade. E é conhecido por aqui como um “esporte de imigrantes”.

Mas durante o Mundial, os australianos se envolveram de vez com a modalidade e lotaram os estádios, inclusive em jogos que não tinham as Matildas em campo (foi o caso das 75 mil pessoas que estiveram em Inglaterra x Colômbia). As Fan Fests também superaram expectativas – mais de 500 mil pessoas já passaram por elas segundo dados da Fifa, que, pela primeira vez, está organizando esse tipo de evento numa Copa do Mundo feminina.

País do futebol?

E com o sucesso das Matildas em campo, dá pra dizer que a Austrália está virando um “país do futebol” ao menos ao longo deste mês. Passeando pelas ruas de Melbourne, Brisbane, Sidney, pra citar algumas das cidades-sede, é comum encontrar autralianos de todos os gêneros e de todas as idades vestindo a camisa oficial das Matildas – sim, delas, que estão sendo mais vendidas que a dos Socceroos, apelido da seleção masculina. A transmissão de Austrália x França pelas quartas-de-final quebrou todos os recordes de audiência – foi a maior audiência de TV por aqui desde a conquista da corredora Cathy Freeman, ouro nos 400m rasos na Olimpíada de Sidney (2000) e um grande ídolo do país.

Para se ter uma ideia, a partida foi transmitida ao vivo em um voo, onde a maioria dos passageiros acompanhou e vibrou com a inédita classificação da Austrália às semifinais da Copa do Mundo.

Isso ajuda a mostrar o mais importante desse jogo: o quanto ele mobilizou o país. Se antes, a liga de futebol australiano (AFL) tentava, de certa forma, ignorar o Mundial feminino que acontecia por aqui – inclusive, a liga e os clubes não liberaram estádios pra Copa em algumas cidades-sede), dessa vez houve um pedido para que o jogo das Matildas fosse exibido no telão antes das partidas de futebol australiano para que o público pudesse assistir. Algo que não foi tão simples de viabilizar em cima da hora por conta de conflito com patrocinadores dos dois torneios, mas deu tudo certo no final, e os fãs de futebol australiano vibraram muito com a vitória das Matildas nos pênaltis.

A reação da torcida em várias partes do país mostra que o envolvimento do australiano com o futebol nessa Copa tem sido muito grande. Na cobertura da mídia local isso também fica evidente. O principal jornal de Brisbane, cidade onde a Austrália enfrentou a França nas quartas, chegou a mudar de nome no sábado para homenagear as Matildas – de “The Courier Mail” para “The Saturday Kerr-ier Mail”.

Para o jogo contra a Inglaterra valendo vaga na final da Copa do Mundo, o país já começou a se mobilizar para oferecer lugares onde os australianos possam ir para torcer pelas Matildas. Estádios em Melbourne, e outros dois estádios em Sidney já confirmaram que estarão abertos para os torcedores irem acompanhar a partida pelos telões.

Transformação

Mas nem sempre os holofotes estiveram voltados para as Matildas e foi preciso muita persistência para que elas finalmente fossem “notadas” pela mídia do país. Assessora de imprensa da seleção australiana desde o início da década de 2000, Ann Odong tinha que insistir bastante para qualquer nota sobre as Matildas sair no jornal ou na TV. Ela conta que até mesmo antes dessa Copa do Mundo alertava os veículos: “olha, isso vai ser grande”, mas tinha gente que duvidava.

Na noite de sábado em que o país inteiro vibrou junto com as Matildas, ela não escondeu sua felicidade: “Por anos, por décadas, eles nos disseram que ninguém ligava. Nós nunca acreditamos neles. Agora eles acreditam em nós. Parabéns a todos vocês que se recusaram a desistir”.

O fenômeno das Matildas tem um reflexo ainda maior nas crianças. E em 2022, o futebol se tornou o esporte mais praticado por meninas no país, superando o netball, um esporte exclusivamente feminino (parecido com o basquete) e muito popular por aqui). É muito comum, inclusive, ver meninas com a camisa da seleção pedindo autógrafos para as jogadoras depois dos jogos ou nos treinos. Sam Kerr, claro, é a favorita delas, e o maior símbolo do futebol nacional. A atacante do Chelsea é uma das grandes responsáveis pelo ‘boom’ da modalidade no país.

Perguntamos na coletiva de imprensa para Ellie Carpenter, lateral das Matildas de apenas 23 anos (mas que joga na seleção principal desde os 15, 16) sobre como ela via essa transformação do futebol feminino por aqui.

“Quando era criança, eu tinha que jogar num time de meninos, não tinha um time de meninas. Fui ver as Matildas jogarem quando eu tinha 12 anos e acho que tinham só 300 pessoas no estádio e eu ainda assim sonhava em jogar com as Matildas. Mesmo com só 300 pessoas no estádio”, afirmou.

“Se eu tivesse 12 anos hoje e fosse a um jogo da Austrália com o estádio lotado e visse que os ingressos estão sempre esgotados, como isso deve ser incrível pra eles, pras meninas, pros meninos, ver até onde nós chegamos… isso era inimaginável. Tenho muito orgulho de fazer parte dessa geração, que está mudando o esporte feminino na Austrália. Nossa missão nessa Copa do Mundo era essa, inspirar novas gerações, isso me deixa emocionada”.

De fato, parece que essa Copa do Mundo será um divisor de águas por aqui com relação a popularidade do futebol. As Matildas realmente transformaram a relação dos australianos com esse esporte, e o legado desse Mundial ficará principalmente para as novas gerações.

A Austrália já fez história chegando nas semifinais e agora enfrenta a Inglaterra buscando um feito ainda maior: a disputa pelo título da Copa do Mundo. O jornal aqui chegou a dizer que se essa conquista vier, será a mais marcante da história do esporte australiano, porque “conquistar algo no esporte mais popular do planeta nunca pareceu algo ao alcance da Austrália”. Pelo que elas têm demonstrado em campo, não há limites para os sonhos das Matildas.

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