“Mãe, será que um dia eu vou jogar com a Marta?”

Adriana embarca para sua primeira Copa do Mundo depois de superar três lesões graves.

*Entrevista produzida em parceria com a Nike

Quando eu fecho os olhos, a primeira coisa que vem na memória é o campinho de terra lá de Cajueiro (comunidade rural de União, cidade piauiense a 65 Km de Teresina). Jogava ali com os meninos até a gente não conseguir enxergar mais a bola. O céu escurecia, eu voltava pra casa com meus irmãos já ansiosa pelo dia seguinte no mesmo campinho.

Às vezes era tanta gente pra jogar, que ficava 20 pra cada lado e era difícil achar espaço até pra respirar, imagina pra bola passar. Mas eu sempre achava. Foi ali que aprendi a driblar. Até hoje eu gosto de chamar as adversárias pro um contra um – só que naquela época era quase um contra vinte. Eu costurava. Com o campo maior agora, então, é minha especialidade.

O campinho era de terra porque não dava nem tempo de deixar a grama crescer. A gente jogava todo dia. E meu pai era o treinador. Ele tinha um time pra disputar campeonatos, mas eu não podia jogar, porque era menina. Foi aí que começou minha carreira de treinadora. É até engraçado contar, mas vou falar pra vocês que deu certo, viu? Comecei já empilhando troféus. 

Meu pai era dono de um bar, então muitas vezes ele não podia comandar o time nos jogos aos finais de semana. Eu falei pra ele: deixa que eu vou, eu sei como os meninos jogam. Convenci. Eu tinha uns 15 anos e, por incrível que pareça, fui aprendendo a ser técnica, observava as características, via uns jogos e falava: isso aqui é legal, vou tentar fazer com os meninos. 

Um dia eu decidi ousar. Vi uma jogada de bola parada do Cristiano Ronaldo, quando ele jogava no Manchester United, olha que loucura. Tinha uma falta, todo mundo na linha defensiva, eu falei para o meu primo, que jogava no time: você vai ficar por último e, em vez de você entrar na área, você vai correr pra marca do pênalti, aí ele só vai rolar e você vai finalizar. Ele falou: não vai dar certo. Eu falei: vai dar. E deu. Gol! Empatamos um jogo decisivo no final e levamos para a disputa de pênaltis. 

Mas se nos campeonatos eu era técnica, no dia a dia eu gostava mesmo era de entrar em campo. No começo, ninguém queria deixar. Eles falavam: “mulher jogando, pode machucar”, mas eu respondia que se machucasse, era responsabilidade minha, eu que queria jogar. Aí aos pouquinhos eu entrava pra completar o time, até que chegou o momento que, quando eu não tava, eles mesmo falavam: po, cadê Adriana? Ela não vai vir hoje?

Até aí, eu só jogava com os meninos.Até que em 2014, fui convidada pra jogar um campeonato em Teresina só com meninas. Era contra o Tiradentes feminino, o melhor time do Piauí. Eu me senti tão bem jogando. Driblava fácil, fazia gol, o pessoal falava: essa magrinha joga! Eu só pensava: será que eu sou boa mesmo?

Fui convidada a jogar o Campeonato Brasileiro pelo Tiradentes. Foi ali que eu tive certeza: é isso que eu quero pra minha vida. Quero ser jogadora de futebol. 

Foi nessa época que teve um jogo da seleção brasileira passando na TV. Eu vi a Marta em campo, ela já era cinco vezes melhor do mundo, era o Pelé do futebol feminino. Nessa hora, eu pensei alto: “nossa, mãe, será que um dia eu vou jogar com a Marta?”. Minha mãe não levou muito a sério. “ah, menina, para de história, tá sonhando muito”.

“Calma mãe, vai dar certo”.

No Tiradentes, jogando o Campeonato Brasileiro, consegui me destacar e chamar a atenção de outros clubes. Conheci a Darlene (meia-atacante, hoje no Flamengo) jogando contra o Rio Preto e ela veio me dizer: “eu tô saindo do clube, vou jogar na China, mas você precisa entrar no meu lugar”.

Ali foi uma decisão difícil pra mim. Fiquei com medo de largar tudo lá e ir pra Rio Preto – eu estaria a quase 3 mil quilômetros de casa. Mas era o que eu queria, eu precisava ir pra lá pra realizar meu sonho. 

Os primeiros três meses foram muito difíceis. Eu ligava pra minha mãe e dizia que queria voltar, queria jogar com os meninos de novo no campinho do lado de casa. “Deixa de besteira, menina, você não quer jogar com a Marta um dia? Fica aí que as coisas vão se ajeitar”. 

Ela estava certa. A gente era um timaço, me aproximei muito da Jéssica (de Lima, atual treinadora da Ferroviária) e ela me ajudou demais na adaptação.

Só que nessa época, veio minha primeira grande frustração, talvez a maior da minha carreira até hoje. Foi ainda no meu primeiro ano em Rio Preto, quando eu estava me preparando pra representar o Brasil na Copa do Mundo Sub-20 em novembro de 2016. Eu tava treinando com a seleção brasileira em Pinheiral. Na hora que eu caí, eu já sabia que era algo sério. Fiz a ressonância e aí veio meu primeiro baque: lesão de ligamento cruzado no joelho. Eu não conseguia dobrar a perna, não conseguia caminhar. O mundo desabou em cima de mim. 

Hoje eu posso falar porque já passei por várias lesões e frustrações na carreira. Mas essa aí foi a pior. Eu tava longe da minha família, na expectativa de realizar um sonho, ir pro Mundial (sub-20) e, de repente, teria que ficar pelo menos seis meses sem fazer o que eu mais amo.

O que eu ia fazer em Rio Preto sozinha? Nesse lugar, sem minha família, sem ninguém. Acho que Deus faz as coisas certas, porque foi aí que eu conheci a Natália (futura esposa). E ela me ajudou em todo o processo de recuperação, porque eu não conseguia nem andar. Ela me levava na fisioterapia todos os dias. A Natália foi um anjo na minha vida e, se não fosse ela, eu não teria persistido nesse sonho. 

Meu retorno foi mágico. Porque voltei a jogar e logo em seguida fomos campeãs paulistas – em cima do Santos, levantando o troféu na Vila Belmiro. Era 2017. E quando eu volto pra casa naquela noite, recebo a ligação mais inesperada da minha vida. Era da CBF.

“E aí, tá preparada? Você acabou de ser convocada pra seleção principal, vai pegar o voo amanhã de manhã pra se juntar ao grupo”.

Foi uma loucura, eu não estava acreditando. Ali a primeira parte do meu sonho já tava se realizando. “Bem-vinda, garotinha”, a Marta me disse quando me abraçou. 

“Mãe, é real. Eu tô aqui com a Marta”. Tive que ligar pra minha mãe pra contar. Ela chorou junto comigo.

A gente ganhou aquele torneio amistoso (Torneio da China em 2017) e eu fiz gol na final contra a China. Entrei e, no meu primeiro toque na bola, ela foi pro fundo da rede. Parece que eu tinha estrela. 

Em 2018, a gente chegou na final do Brasileiro e perdeu pro Corinthians. Fui eleita a melhor jogadora. E o Arthur (Elias, técnico do Corinthians) já tava tentando me levar há tempos pra jogar com ele. Eu tava com muito receio de ir, pensava que nunca iria conseguir jogar naquele time. Sente só o elenco delas na época: Gabi Nunes, Grazi, Cacau, eu não tinha como jogar. 

Mas depois dessa final contra elas, entendi que meu ciclo no Rio Preto tinha se encerrado e eu precisava dar esse passo. E vocês não vão acreditar. No meu primeiro jogo com a camisa do Corinthians, eu também fiz um gol. Seria o primeiro de muitos que eu faria com essa camisa. Fiquei quatro anos lá, conquistei tudo, fui muito feliz. 

Mas de todos os gols, o mais especial foi naquela final do Campeonato Paulista de 2021. Era 8 de dezembro, a primeira final que poderíamos jogar com público desde a pandemia de covid-19. Eram mais de 30 mil na Arena em Itaquera, um novo recorde que a Fiel estabeleceu na época.

A final era contra o São Paulo e elas tinham vencido o primeiro jogo por 1 a 0. A gente não tava acostumada a perder jogo, muito menos final. Mas se tinha uma coisa que a gente tava acostumada era ganhar título. E com 30 mil pessoas nos empurrando aquele dia, não ia ter jeito.

A Gabi Zanotti fez dois gols no primeiro tempo, mas o São Paulo descontou. O tempo ia passando e a gente tava precisando de um gol pra não ir pros penaltis. A gente olhava pro Arthur e ele tava pirado. Ele queria me tirar do jogo. Ele olhou pra mim e pra Portilho e falou: vou tirar vocês, não estão fazendo nada. Eu não fico quieta né? “Pode tirar, vai, tira”. A gente tem essas tretas, mas ele é meu paizão, a gente tem uma amizade muito grande. 

Mas aí veio o lance no final. Vocês lembram, começou lá atrás, a Tarciane tocou pra Tamires, Tamires pra Portilho, Portilho pra Zanotti, dela pra Jheniffer, aí a bola chegou e eu lembro que eu fui carregando devagar. A torcida foi crescendo junto. Pensei: vou esperar a Poli(ana) passar. Toquei pra ela, ela tocou pra Vic e na hora eu já vi tudo: vai vir na minha esquerda. Esse é meu maior defeito: eu não tenho perna esquerda. Só que naquela semana, treinei muito pra melhorar a finalização com ela. A gente sabe que atacante bom é atacante que chuta com as duas, eu tinha que aprender. Era eu e o preparador físico comigo, me ajudando a treinar – saiu tudo, ó, uma merda (com o perdão da palavra). Mas naquela hora, eu pensei: vai ter que ser de esquerda, vou chapar. Não era força, era jeito. Quando toquei na bola, sabia que ela iria para o gol. Aos 45 do segundo tempo.

Eu não sabia nem como comemorar, só caí ali no chão e a galera pulou em mim. Acho que eu nunca tinha jogado com tanta torcida fora da seleção. Todo mundo em êxtase.

Mas calma, quem lê essa carta até aqui pensa que eu fui pro Corinthians e foi tudo lindo na minha carreira daí em diante. Faltam ainda os dois outros momentos mais difíceis da minha vida. 

Em 2019 eu tinha tudo pra ir pra minha primeira Copa do Mundo. Eu estava voando no Corinthians, tinha participado do ciclo, era nome certo da lista do Vadão (então técnico da seleção na época). E eu realmente estava nela. Mas um dia antes da convocação, no clássico contra o Santos, eu fiz um gol e, ao pular a goleira pra comemorar, caí. Na hora, eu já soube. Eu tava fora da Copa do Mundo.

Saí chorando e o pessoal tentava me dizer: calma, vamos fazer os exames. No chuveiro, eu desabei. Eu sabia que iria perder aquele Mundial. Era meu joelho de novo. 

Não foi tão difícil quanto três anos antes porque, dessa vez, eu já estava mais forte psicologicamente, já sabia o que eu queria, e sabia que tinha que ser forte pra voltar melhor e ter mais uma chance na seleção brasileira.

Tudo isso aconteceu. Eu recuperei, voltei a jogar, voltei a vestir a camisa da seleção brasileira, agora comandada pela Pia (Sundhage). E, de novo, meu nome apareceu na lista. Eu ia pra Tóquio disputar os Jogos Olímpicos, minha primeira competição oficial com a seleção. Embarquei para a preparação nos Estados Unidos empolgada demais.

Mas em um dos treinos lá, eu senti de novo. Dessa vez, foi o tornozelo. Fui cortada. Mais uma vez, o sonho de disputar um grande torneio com a camisa do Brasil tinha sido adiado. Mas a Lillie (Person, auxiliar técnica da seleção) me disse uma frase que me marcou: “Adri, seu sucesso vai ser na Copa América e na próxima Copa do Mundo”. 

Foi nisso que eu foquei. Depois do mundo desabar de novo, eu cheguei a pensar: meu Deus, mais uma vez, será que eu consigo? Falei pra mim mesma que depois que eu me recuperasse dessa lesão ninguém mais iria me parar. 

Dito e feito, fui artilheira da Copa América, comecei a jogar no Orlando Pride com a Marta, e agora estou prestes a disputar minha primeira Copa do Mundo pela seleção brasileira. 

Espero que a gente possa fazer uma grande Copa. A gente sabe que a gente tem condição pra isso. E também por tudo o que envolve, por ser a última Copa da Marta, e por tudo o que as tantas jogadoras que vestiram essa camisa já fizeram. Eu não tenho noção do que elas passaram lá atrás pra gente estar vivendo isso. Então temos que saber aproveitar essa oportunidade. Eu falo com com as meninas mais novas hoje: olha tudo o que tá acontecendo, a gente pode mudar definitivamente o futebol feminino no Brasil trazendo esse título. A gente tem condições disso. 

E se disserem que eu tô sonhando muito, eu trago logo a resposta que dei pra minha mãe lá atrás quando eu dizia que um dia eu iria jogar com a Marta: ‘calma, vai dar certo’.

E não deu?

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