(Foto: Reprodução/Cruzeiro/Gerdau)
“Nascer na década de 1990, mais especificamente em 1995, me faz ser de uma geração privilegiada, que pôde ter mulheres como referência”, ressalta Kin Saito, diretora de futebol feminino do Cruzeiro, cargo que ocupa desde março de 2022, quando foi pega de surpresa pelo convite do Ronaldo Fenômeno, que havia acabado de se tornar sócio majoritário do clube.
“Por mais que não seja ainda na quantidade que gostaria que tivesse, sinto que eu conseguia olhar para cima e me espelhar em mulheres”, pondera Kin, ao lembrar que assistir na TV às corridas de Fórmula 1 e a programas jornalísticos com mulheres, como Glenda Kozlowski, faziam parte das manhãs de domingo dela quando criança. Referências que se somam à leitura do livro “O dia em que as mulheres viraram a cabeça dos homens”, em que o autor René Simões narra a experiência de comandar a seleção brasileira feminina até a conquista da medalha olímpica inédita em Atenas.
Inspirações que a levaram a bater na porta da CBF aos 18 anos, sem sequer ter entrado na faculdade de jornalismo ainda, para pedir que a deixasse acompanhar os bastidores dos profissionais de imprensa durante a Copa do Mundo de 2014. Kin argumentou que não queria ter contato com os jogadores, mas com os jornalistas e deu certo! Ali começava uma trajetória recheada de perspicácia para enxergar oportunidades de negócio e aprimoramento em lacunas do futebol feminino.
Kin trabalhava como coordenadora de futebol feminino no Grupo R9, do Ronaldo, desde 2017 e estava na casa do ex-jogador quando ele anunciou que seria o novo dono do Cruzeiro. “Naquela altura, eu só imaginava que daria continuidade ao trabalho na área de comunicação e negócios. Mas aí veio esse convite e, na verdade, eu respondi não. Eu não me sentia pronta e precisei ser convencida por todos eles: o diretor de comunicação, Vítor Rios, o diretor executivo de futebol, Pedro Martins, e o próprio Ronaldo”, relembra Kin.
Um ano depois, a gestora de 27 anos sabe que o maior desafio do futebol feminino ainda é de ordem cultural. “Nós, que temos o privilégio de estarmos em uma posição de liderança no futebol feminino, não podemos limitar o nosso olhar à temporada 2023 ou 2024. Temos que pensar além”, avalia Kin, que destaca a modalidade como um pilar estratégico no Cruzeiro.
Em entrevista ao Dibradoras, Kin Saito reflete sobre a falta de mulheres em cargos de gestão no futebol, explica como vem trabalhando para construir um projeto de referência no futebol feminino fora de São Paulo e conta como é a relação dela com o Ronaldo e o que esperar desse Cruzeiro turbinado após a chegada do ex-craque na SAF (Sociedade Anônima do Futebol).
SAFs no futebol
O Cruzeiro tem o marco de ser a primeira SAF em um clube de grande torcida no Brasil e, mesmo com esse pioneirismo, Kin reconhece que essa mudança não garante sucesso. “Em alguma medida, estamos todos descobrindo, a partir dessa nova lei (de agosto de 2021), o que é esse novo modelo de gestão para um clube de futebol. Essa medida de ser profissional ou fazer um negócio financeiramente sustentável e com planejamento depende das pessoas que estão ali e do direcionamento que se tem. Não acho que ser um clube empresa é garantia que tudo será um sucesso. Não depende de ser uma SAF ou ter um dono. Depende muito mais da mentalidade do grupo de trabalho, da noção do que se considera curto, médio e longo prazo e, principalmente, do planejamento e da responsabilidade.”
Futebol feminino no Cruzeiro
“Ter chegado sem precisar convencer ninguém da importância do futebol feminino já faz o Cruzeiro largar na frente em termos de mentalidade. O clube tem o entendimento de que o futebol feminino é um pilar estratégico, assim como outras áreas. Eu sempre volto lá na frase dita pelo Pedro Martins, que é o diretor executivo de futebol, com passagem por Athletico Paranaense, Ferroviária e Federação Paulista. Ele disse: o que houver de trava cultural para desenvolver o futebol feminino, vou caminhar do seu lado e vamos dar passo a passo juntos”, revelou a dirigente.
“Ouvir isso do cara que está diretamente acima de você faz toda a diferença. Primeiro, pelo reconhecimento de que existem travas culturais e, segundo, por se colocar junto nessa. Sinto que o diálogo consegue ser muito mais produtivo tirando esse elefante da frente. Me dá um sentimento de muito respaldo, autonomia e colaboração entre as áreas. Aquilo de pagar para o futebol feminino treinar fora das estruturas de centro de treinamento do clube acabou quando o Ronaldo chegou. Vamos incorporar o futebol feminino à realidade da Toca da Raposa 2. Se pegarmos a quantidade de clubes da Série A1 que também pisam, literalmente, na mesma grama que o futebol masculino, vamos contar nos dedos”, completou Kin.
Pilar estratégico
“Está muito claro, a nível global, o impacto que o futebol feminino tem, mesmo tendo sido uma categoria proibida com toda essa história que a gente conhece de ordem cultural na formação do nosso país. Eu partiria do princípio que o Cruzeiro SAF reconhece o futebol feminino como um pilar estratégico. A partir disso, o que é inegociável ao longo desse processo de construção? A primeira medida é ter a mentalidade de integração, que é num primeiro momento uma integração estrutural, para gerar um sentimento de pertencimento. Eu sinto que, tanto entre as atletas que estão no Cruzeiro desde o início, em 2019, até as que chegaram nesta temporada, esse sentimento de pertencimento é algo que já gera um choque inicial.”
Metas de longo prazo
Kin revelou que a visão de planejamento do time mineiro é de longo prazo e que o clube está com o planejamento montado até 2030. “Logo nos primeiros dias de trabalhos no Cruzeiro, estabelecemos duas metas macros. A primeira é a profissionalização, que não pode se resumir aos contratos, que foram revisados – hoje as atletas do Cruzeiro estão conforme pede a Lei Pelé, com 60% em CLT e 40% em direito de imagem. Isso é uma super conquista, porque infelizmente ainda não é a realidade dos 16 clubes da primeira divisão, mas é o tipo de passo que não podemos voltar atrás”, destacou.
Mas a profissionalização também passa pela infraestrutura, pelas condições de trabalho e pela qualidade das pessoas que compõem a comissão técnica e o staff e, pensando nisso, o Cruzeiro pensa em uma medida de profissionalização mais ampla. “Já vemos avanços, mas queremos aprimorar cada vez mais. Alguns exemplos práticos são ter um GPS nas atletas para o acompanhamento de um fisiologista, ter questionários pré-treino, fazer acompanhamento menstrual, oportunizando a nutricionista e a suplementação. Tudo que for contribuir para a performance da atleta é importante e vamos estar com esse olhar atento.”
A segunda meta macro é a sustentabilidade, que é também financeira. “Não vamos mirar só no campo nem cometer loucuras de investir tudo em folha salarial, porque tem que ter um equilíbrio orçamentário. Eu quero sempre ofertar as melhores condições de trabalho, a melhor estrutura, os melhores profissionais. É nessa pegada que o Cruzeiro vai se desenvolver ao longo dos anos”, pondera a diretora.
Com participação ativa de Ronaldo, o time feminino começa a ter objetivos de curto prazo e se preocupa também com a implantação de um estilo de jogo. “Quando o clube se transforma no Cruzeiro SAF, já existia um elenco no futebol feminino e fomos correr atrás do objetivo de permanecer na primeira divisão e mirar no objetivo de chegar na final do Campeonato Mineiro e de começar a moldar o que é o estilo de jogo do Cruzeiro dentro de campo. Aí o Ronaldo se envolve muito. Independente da categoria, ele quer que o Cruzeiro tenha uma identidade dentro e fora de casa. Então começamos esse trabalho com a comissão técnica”, revelou Kin.
Copa do Mundo feminina
Para a gestora, a evolução do futebol de mulheres não pode ser baseada apenas nas conquistas alcançadas durante a Copa do Mundo. As entidades também precisam participar desse crescimento. “Sabemos que a Copa do Mundo de 2019 se tornou um divisor de águas. Mas não quero apostar todas as minhas fichas que esse processo contínuo de desenvolvimento do futebol feminino está nas costas de uma Copa. Porque esse desenvolvimento passa pela Conmebol melhorar cada vez mais a competição continental, seja ela de seleções ou clubes. Passa pela CBF se propor a criar uma nova competição, a fortalecer as condições de trabalho, a trazer novos patrocinadores, a negociar novos contratos de direitos de transmissão. Passa pelas federações que se propõem e têm boas referências para fazer um trabalho legal com competição estadual, seja adulto ou de base. Passa pela responsabilidade que cada clube tem de assumir o papel de liderar pelo exemplo”, declarou.
“É ótimo que vamos ter Copa do Mundo feminina em 2023 e Olimpíadas de Paris em 2024, mas estou muito preocupada com o que vamos construir até o ano de 2025 e 2026 para que as nossas competições nacional e estadual estejam tão sólidas, de fato, a ponto que não tenham nenhum revés por não ter um evento global do futebol feminino nos puxando nessa direção. Hoje, o maior desafio do futebol feminino ainda é de ordem cultural. Nós, que temos o privilégio de estar em uma posição de liderança no futebol feminino, não podemos limitar o nosso olhar às temporadas de 2023 ou 2024. Temos que pensar além, porque tem esse ciclo e, depois, em 2027 tenho certeza que vamos viver novamente recorde de audiência, de público, de engajamento, essa mudança de cultura. Não há pressão por nenhum tipo de resultado em 2023. Mas sabemos que ali vai ser o nosso primeiro passo para tudo que vamos construir ao longo dos próximos anos”, conclui Kin.
Poucas mulheres na gestão
Kin recebeu o convite para trabalhar no Cruzeiro em janeiro de 2022. Ela estava na casa do Ronaldo ele anunciou que seria o novo dono do clube. E, diante da proposta que recebeu, a jornalista recusou o convite para ser diretora de futebol feminino do Cruzeiro.
“Eu não me sentia pronta e precisei ser convencida por todos eles, que me mostraram que era justamente a minha bagagem na área de comunicação e negócios que fazia sentido para eu ocupar essa posição. E aí, vem um problema que é macro: faltam mulheres em cargos de gestão. Ainda estamos formando uma geração, ainda contamos nos dedos quem são essas mulheres que já estão ocupando espaços em algum clube ou entidade. Por vezes, vamos ter que formar essas profissionais e ir abrindo espaços. Eu nunca tinha pisado em Belo Horizonte, mas hoje eu me vejo completamente entregue nesse projeto de querer transformar, não só o Cruzeiro, mas até o estado de Minas Gerais. Ainda temos muito o que caminhar para além do círculo de São Paulo.”
Tamires, o case de sucesso
“Para além do que conhecemos do Ronaldo dentro de campo, eu sempre achei muito fascinante o que ele construiu fora dos gramados e também ao redor dele. Quando eu saí da CBF e estava com essa ideia de olhar a baita lacuna no mercado para conseguir profissionalizar a comunicação no futebol feminino em 2017, eu olhava pro Ronaldo e pensava: tudo bem que nem todo atleta vai ter o tamanho dele, mas eu tenho certeza que todo atleta precisa de algum nível de suporte na comunicação, na área de negócio, na área de patrimônio, gestão de contabilidade, no largo empresarial em que tem as transferências”, contou a diretora.
Para trabalhar com o futebol feminino, Kin percebeu que era necessário mudar e melhorar a comunicação em torno das atletas para promover mudanças. “Naquela altura, víamos matérias que falavam: ‘Marta, Formiga, Cristiane e companhia’, não se falava muito quem eram essas outras atletas. Quando a Tamires era mencionada, era muito a ‘mãe da seleção’. A gente precisava mudar as perguntas que eram feitas para ela com objetivo de mostrar também o lado dela como voz ativa do futebol feminino, da Tamires mulher. É um trabalho que começa voltando às origens da assessoria de imprensa, de ser pró-ativo, de ir atrás de quem faz essa cobertura e perguntar o que precisa de informação que eu posso te ajudar. Toma aqui um mídia kit um pouco fora do convencional sempre tentando ser mais completo para tentarmos realmente ser propositivos nessa mudança.”
Foi usando o exemplo do Ronaldo que Kin implantou uma nova maneira de comunicar o futebol feminino. “Eu falei pra pegarmos essa essência do que o Ronaldo construiu de bom ao redor dele e ir colocando no futebol feminino, claro que respeitando o momento, o processo e o contexto. Mas ele é um cara muito aberto e pai de meninas, que dialoga com o futebol feminino. Naturalmente, de 2017 para cá, eu entro lá como estagiária e vou mostrando ao longo do tempo, não só para ele, mas para todo mundo, o quanto eu estava comprometida a ir montando esse caminho com as mulheres ou para as mulheres no futebol, com liberdade e criatividade que eles sempre incentivaram. Para além da figura do Ronaldo, óbvio que ele é esse símbolo e todo mundo que esteve ao redor sempre incentivou muito, e não à toa tanto eu quanto o Vitor estamos aqui no Cruzeiro hoje.”