Como as mulheres da natação conseguiram resultados históricos para o Brasil no Mundial

(Foto: Satiro Sodré/SSPress/CBDA)

Uma foto divulgada em 2020 pela Confederação Brasileira de Desportos Aquáticos (CBDA) foi a responsável para que uma significativa mudança de rumos na natação feminina dentro da entidade acontecesse. O clique mostrava 14 atletas – todos homens – convocados pela CBDA para participar da Missão Europa (iniciativa criada pelo Comitê Olímpico do Brasil com o objetivo de levar atletas olímpicos do Brasil para treinar em Portugal durante a pandemia).

Na época, a ausência de mulheres na delegação brasileira fez com que a medalhista olímpica, Poliana Okimoto, se manifestasse em seu Instagram e escancarasse ainda mais uma desigualdade de gênero que impera na natação brasileira há anos. “Não acho que faltam mulheres no nosso esporte, o que acho, é que falta um olhar mais atento para elas, projetos diferenciados, buscando esses talentos e apoiando o trabalho delas desde o inicio”, escreveu em julho de 2020.

Na época, nós fizemos uma reportagem, e a justificativa dada pela entidade foi que as estruturas oferecidas para homens e mulheres na Confederação são as mesmas, mas que a Missão Portugal oportunizou apenas atletas que garantem bons resultados.

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(Foto: Reprodução CBDA)

Impulsionadas em busca de mudança, atletas e ex-atletas da modalidade se uniram, criaram o Comitê Feminino da Natação Brasileira e passaram a dialogar com a CBDA, exigindo maior apoio e atenção à modalidade feminina. E o resultados vieram: ótimos índices foram alcançados pelas mulheres no Mundial de Budapeste, realizado em junho deste ano.

“Debatemos com a CBDA para dar mais oportunidades para as mulheres da natação. No final do ano passado, eles deram uma oportunidade das meninas competirem no Mundial de Curta. E agora, no Mundial de Longa, vimos que dando oportunidade, os resultados aparecem. E assim, foi em um curto prazo, não deu nem seis meses (de uma competição pra outra). Então, onde pode-se chegar se der oportunidade pra essas meninas? Já tivemos várias situações que são prova disso, mas faltava um olhar mais técnico da CBDA pra natação feminina e a gente fez por merecer”, declarou a nadadora Giovanna Diamante em entrevista às Dibradoras.

Ao site, Renato Cordani, Vice-presidente e chefe de equipe da seleção brasileira de natação em Budapeste, declarou que a entidade entendeu que era necessário adotar critérios distintos para as mulheres. “O que fizemos foi o reconhecimento de que elas precisavam de um impulso diferente do critério frio, igual ao masculino. De forma que para ser justos, tínhamos que ter critérios um pouco diferentes para elas.”

Ajustes nos critérios classificatórios e oportunidades para as mulheres

De acordo com Giovanna, os critérios classificatórios de quem participaria das competições era definido a partir de um índice imposto pela FINA (Federação Internacional de Natação) mas que, além disso, a CBDA colocava um novo índice acima do que estipulado pela FINA. “E aí ficava mais difícil e acabava fazendo com que mais homens atingissem o índice, porque as mulheres ainda não chegaram a ser medalhistas de Mundial ou finalistas a rodo, como acontece com os homens. Esse era o ponto: levar as mulheres com índice da FINA para competir, mesmo que elas não tenham o índice da CBDA. E a partir daí, a CBDA só fez competições baseadas no índice FINA”, explicou.

Cordani explicou que a CBDA facilitou o tempo de classificação dos revezamentos, descontando 1.5s na soma, e também nos índices individuais, e isso aumentou a possibilidade delas de fazerem parte da seleção.

“Em retribuição, elas treinaram mais e melhoraram os próprios tempos. Como um efeito bola de neve, elas foram se motivando e melhorando, e culminou no melhor Mundial da história da natação feminina, de longe. Para se ter uma ideia, em toda a história dos Mundiais (desde 1973) o Brasil só havia nadado uma final de revezamento feminino (2009). Agora, em uma só edição, pegamos duas finais. Além disso, tiveram excelentes resultados individuais, muitos recordes sul-americanos, brasileiros e de categoria, melhores marcas e melhores colocações pessoais”, completou o dirigente.

Em dezembro de 2021, aconteceu o Mundial de Piscina Curta (25m) em Abu Dhabi e havia 20 vagas para a equipe brasileira, só que mais de 20 atletas atingiram o índice da FINA. Como solução, a CBDA ranqueou os atletas de acordo com os melhores colocados no Mundial do ano anterior e levou também uma cota de mulheres, que significava ter, pelo menos, seis mulheres dentro do ranking.

Eles (CBDA) implementaram isso, mas se você fala cota, as pessoas viram a cara, mas elas tinham o índice. Aí, pro Mundial de Longa em Budapeste, o COB (Comitê Olímpico do Brasil) disponibilizou verba pra CBDA levar quem fizesse o índice e não tinha limite de vagas. Por isso apareceram tantas mulheres. A gente fez o índice e tivemos o direito de estar lá. A desculpa é sempre que não tem verba e aí eles levavam os 10, 15 ou 20 melhores e apareciam só os homens porque a natação masculina é muito mais evoluída do que a feminina. Não tem jeito!”, completou Giovanna.

O protagonismo feminino no Mundial de Budapeste

Com as oportunidades dadas, os bons resultados vieram. Nos 100m livre, a jovem Stephanie Balduccini, de apenas 17 anos, foi a décima colocada das semifinais, com o tempo de 54s10, ficando a sete centésimos de bater o recorde sul-americano e mais uma vez melhorando sua melhor marca pessoal.

Até então, em toda a história da natação do Brasil, só um revezamento feminino, o 4x100m medley, havia chegado uma vez à final de um Mundial, em 2009. Em Budapeste foram duas finais, dois sextos lugares, com o 4x200m e com o 4x100m livre, e com diversas meninas jovens, como a própria Stephanie, Giovana Medeiros (18 anos recém-completados) e Ana Carolina Vieira (21 anos).

Também pela primeira vez na história, duas mulheres disputaram uma mesma final de Mundial. Nos 1.500m, Beatriz Dizotti foi sexta colocada, com recorde brasileiro, e Vivi Jungblut terminou em sétimo, também melhorando, em Budapeste, seu antigo recorde nacional.

Ainda no Mundial, Vivi alcançou mais uma marca ao se classificar para a final dos 800m livre. Ela era a primeira reserva da prova, mas após a desistência da australiana, Kiah Melverton, a nadadora competiu na final. E Jhennifer Alves, de 25 anos, também alcançou conquistas inéditas no Mundial, competindo nos 50m peito. Ela foi finalista e acabou na 8ª colocação com o tempo de 30s45 e estabeleceu um novo recorde sul-americano: 30s28.

Foi uma virada de chave. Elas realmente entenderam que estamos lá porque merecemos. Acho que os próximos Mundiais serão melhores ainda porque estamos numa evolutiva e ganhando experiência em grandes competições. Viver experiências nos Jogos Olímpicos, depois no Mundial de Curta e na sequência estar no Mundial de Longa faz muita diferença. Dar oportunidade para essas meninas caírem na água, com mulheres de alto nível, tops do mundo, vai fazer a gente amadurecer também”, analisou Giovanna.

Olhando para o futuro, a nadadora de 26 anos – que está cursando Jornalismo – prevê que nos Jogos Olímpicos de Paris-2024, as mulheres podem alcançar melhores marcas na competição. “Os índices (classificatórios) para Paris já saíram e espero que a CBDA se organize pra ter um planejamento bom pra que essas meninas continuem em alto nível e possam nadar uma semifinal ou final olímpica. Eu, pelo que tenho visto, acho que vai ser a melhor participação feminina do ciclo e será uma ótima maneira de amarrar toda essa nossa luta. Natação vem evoluindo e vejo as meninas mais novas crescendo juntas e isso é bom, traz competitividade e a gente precisa disso também.”

Mulheres fortalecendo mulheres 

Essa mudança de tratamento com as mulheres na CBDA ganhou força com o apoio das atletas veteranas, que tomaram a frente e se manifestaram contra a postura da entidade – como fizeram Poliana, Joanna Maranhão, Patrícia Amorim, entre outras – e encorajaram as atletas mais novas a também brigarem por esse direito.

Na sequência, foi criado o Comitê Feminino da Natação , com o intuito de ser um canal informativo sobre a natação feminina e que é abastecido e administrado pelas próprias atletas da atual geração. “Depois do que a Poliana falou, entendemos que se todas as mulheres da natação brasileira se juntarem e falarem, fica muito mais difícil da CBDA, o COB, os técnicos, seja lá quem for, bater de frente conosco por algo que estamos lutando. Tivemos várias reuniões com a CBDA para argumentar e entender o que cada lado precisa e, de fato, fomos ouvidas e eles deram a oportunidade das mulheres competirem no Mundial de Curta. É suficiente? Não é. Eles deram 6 vagas para as meninas, mas enquanto essas 20 vagas não forem divididas em 10 pra cada, não vamos estar satisfeitas. Foi um bom começo e pode caminhar pra uma melhora”, completou Giovanna.

Para Flavia Delaroli, ex-nadadora e finalista olímpica em 2004, a criação do Comitê tem como principal objetivo fortalecer a união entre as atletas. “Tudo fica muito mais fácil quando as experiências são compartilhadas, quando tem esse apoio. Tivemos reuniões em que as mais velhas compartilhavam opiniões e trocavam com as mais novas. Tem coisas que parecem pequenas, mas que fazem muita diferença e o principal motivo da criação do Comitê é impedir que a natação feminina seja ignorada”, disse às Dibradoras.

A geração atual das nadadoras está mais consciente e unida do que nunca. As atletas passaram a questionar a estrutura desigual que imperava na Confederação. “Quando você para pra olhar, vê que era um negócio realmente absurdo. E se você não lutar, de que adianta ficar brigando, treinando pra fazer índice, porque mesmo que eu tenha o índice, eles não vão me levar porque não estou entre os top 20. Nossa vida de atleta já é difícil, não é só treinar bem e competir bem, vai além disso e é desestimulante. E, pra não abalar essas meninas (mais novas) a gente tem que abraçar a luta”, concluiu Giovanna.

Os próximos desafios mais importantes das mulheres na natação são a disputa do Troféu José Finkel, em setembro (que funciona como seletiva para a disputa do Mundial de Piscina Curta) e o Mundial de Piscina Curta em dezembro.

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