Formiga, a última dança: 26 anos de seleção, 233 jogos e um legado imensurável

Era 1995, às vésperas da segunda edição oficial de uma Copa do Mundo feminina, um nome na lista de convocadas da seleção brasileira surpreendeu até mesmo os dirigentes da CBF na época: aos 16 anos, Miraildes Maciel Mota, hoje conhecida como Formiga, começava sua trajetória com a camisa verde-amarela.

Até dava para entender a desconfiança – mas só de quem nunca a tinha visto jogar. À primeira vista, Formiga parecia uma criança ainda, de tão magrela e franzina que era após uma infância cheia de dificuldades em Lobato, no subúrbio de Salvador. “É sério que essa menina joga?”, foi o que pensou Marcia Tafarel, meio-campista já da seleção brasileira quando conheceu Formiga no Euroexport da Bahia em 1993. No minuto que a garota pegou na bola, Tafa entendeu que o tamanho ali definitivamente não interferia no talento.

“Ela tinha talento, habilidade, e uma visão de jogo já aos 14 anos de idade, só precisava ganhar maturidade em campo. E isso ela foi adquirindo com os anos. Eu a apelidei de Formiga Atômica, porque ela corria demais, era uma jogadora que tinha uma vitalidade incrível, mesmo sendo franzina”, afirmou a ex-jogadora à reportagem.

Formiga no início da carreira na seleção brasileira com a camisa 8 (Foto: Arquivo Pessoal)

O que aquela baiana arretada queria era uma coisa só: jogar bola. Só que não seriam poucos os obstáculos que enfrentaria em busca desse sonho. A começar pelo maior deles – o fato de ter nascido menina no país que se diz do futebol, mas não reconhece as mulheres nesse esporte.

Foi a única menina numa família de cinco filhos e perdeu o pai quando ainda era um bebê de oito meses. Na casa dela, tentaram que prevalecesse a lógica – meninos brincavam de futebol, a menina, de casinha. Mas Formiga nasceu para desafiar a lógica, não para segui-la. E aos sete anos, lá estava ela arrancando a cabeça da boneca para improvisar o brinquedo que mais gostava: a bola.

A menina que apanhava dos próprios irmãos quando ousava jogar bola na rua virou uma das maiores jogadoras da história da seleção brasileira. Formiga é recordista absoluta de jogos com a camisa do Brasil (tem 233, superando Cafu, recordista no masculino com 149), é recordista de Copas do Mundo (disputou 7, mais do que qualquer outro jogador/a) e disputou 7 edições olímpicas, mais do que qualquer outro atleta brasileiro. Sã0 26 anos servindo a seleção, uma vida inteira dedicada ao futebol feminino. E o último ato dessa passagem está chegando.

Nesta quinta-feira, às 22h (horário de Brasília), em amistoso contra a Índia na Arena da Amazônia, Formiga vestirá pela última vez a camisa da seleção brasileira – transmissão do Sportv. 

 

Quando se pergunta à Formiga o seu segredo para a sua longevidade no futebol (aos 43 anos, ela segue jogando no São Paulo e vai disputar a final do Paulista no próximo mês), ela brinca e diz que é “água de coco”. Mas quem convive com a jogadora sabe que a chave desse sucesso aí não poderia ser outra: é trabalho.

“Quando você atinge uma idade no Brasil, 30, 35 anos, você já é considerada veterana e falam em aposentadoria. A Formiga quebrou esse paradigma. A Formiga hoje é uma líder pela longevidade, persistência, pela forma com que conduz a vida dela. É um exemplo pra qualquer jogadora da nova geração”, afirmou Marcia Tafarel.

Formiga jogou com quase todas as gerações da seleção brasileira e jogou com Sissi na década de 1990 (Foto: Arquivo Pessoal)

Início

Quando ainda era Miraildes, Formiga dava seus dribles nas ruas de terra da periferia de Salvador e saía correndo ao ver os irmãos vindo atrás. Jogar bola era motivo de apanhar para ela. Mas nem as chineladas deles a afastariam de sua maior paixão. E foi numa tarde dessas de “baba” (como se chama o futebol de rua na Bahia) que ela foi vista de longe por Dilma Mendes, aquela a quem chama até hoje de “mãe pequenininha”.

“Deus mandou um anjo na minha vida, que foi a Dilma Mendes. Ela me viu jogando num campo de barro e me convidou pra jogar no Euroexport da Bahia. Falei que ela tinha que convencer minha mãe, a fera Dona Celeste. Dilma abriu as portas do futebol feminino pra mim”, contou a jogadora em entrevista à CBF TV.

Dilma jogou bola também, mas num período em que futebol era proibido para mulheres. Acabou investindo na carreira de treinadora, montou o primeiro time de futsal feminino da Bahia e seguiu desenvolvendo o trabalho para meninas e mulheres no campo. Ao passar de carro perto do campo de barro onde Formiga jogava com os meninos, Dilma não hesitou em estacionar para falar com ela.

Dilma e Formigas se reencontraram em peça publicitária recente (Foto: Reprodução)

“Eu resolvi parar pra assistir. Ela descalça jogando no meio dos meninos, chutando a bola sem nenhum medo. O detalhe do chute, da finta… não era nem tanto a técnica, porque precisava aperfeiçoar isso, mas essa essência da coragem, da menina que estava buscando aquele espaço. Aquilo que a Formiga tinha era só dela, talento puro. Só precisava ser lapidada”, contou às dibradoras Dilma Mendes, a “descobridora” de Formiga na Bahia.

Isso aconteceu quando a garota tinha 11 anos. Foi nessa época, que Dilma já quis levá-la para jogar no seu time recém-formado do Euroexport Bahia para poder formá-la como uma jogadora de verdade. Na época, a Mira, como era conhecida, não tinha a menor ideia do que queria com o futebol – apenas queria jogá-lo.

“O que importava pra ela era jogar. Ela treinava de manhã, se deixasse à tarde ia pro baba, se deixasse ia pra mais um baba, depois chutava bola na parede em casa. Ela não tinha essa coisa de: vou jogar na seleção. Ela jogava porque gostava mesmo”, contou Dilma.

(Foto: Harry How/Getty Images)

O apelido, não é muito difícil de decifrar de onde veio. Quem já viu Formiga jogar, entendeu na hora. Ela parece um flash em campo, se multiplica por todas as áreas dele e tem um fôlego que, ainda aso 42 anos, é de dar inveja. E claro, “Gol de Miraíldes” era algo muito difícil de se dizer, brinca a treinadora.

“Ela jogava de tudo. E se botar no gol, joga também. Se faltasse atleta de alguma posição, podia botar Formiga. Ela corria tanto, fazia tanta loucura. Quando a gente pensava que ia ser gol, chega a Formiga pra tirar. Quando a lateral perdia a bola, quem estava na cobertura? Formiga. Quando era gol nosso, quem tirava a bola de dentro do gol pra recomeçar logo o jogo? Formiga. Então, era uma Formiga, porque ela estava em tudo quanto é lugar”, diz Dilma, aos risos.

 

 

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A ideia da treinadora era levá-la para jogar um torneio no Sudeste para que, de lá, nem ela, nem os outros talentos que tinha em mãos precisassem voltar. Isso porque estando no Nordeste, naquela época, era difícil que tivessem alguma chance na seleção.

Acabou que o time todo foi “importado” para São Paulo e, na capital, fizeram história com o Saad, um dos maiores times de futebol feminino dos anos 1980 e 1990. Formiga foi para a seleção, jogou no São Paulo, no Palmeiras, no São José, colecionou títulos por clubes brasileiros (foi tricampeã da Libertadores, inclusive), brilhou nos últimos anos no PSG e voltou ao São Paulo neste ano.

Fenômeno

Não é raro ouvir técnicos ou jogadoras que já trabalharam com Formiga dizerem que ela deveria ter sido “a melhor jogadora do mundo” em algum desses seus 25 anos de carreira. Claro que sua posição de meio-campista/volante não ajuda tanto em premiações assim. Mas é impressionante como todos os treinadores que já conviveram com ela não cansam de exaltá-la.

Lucas Figueiredo/CBF

Em 2016, após disputar sua sexta Olimpíada, Formiga chegou a se despedir da seleção brasileira e anunciar a aposentadoria. Mas o desejo de colaborar com o crescimento do futebol feminino e da nova geração de jogadoras prevaleceu e ela voltou a vestir a camisa amarela em 2017. Com duas medalhas de prata olímpicas (2004 e 2008), um vice-campeonato na Copa (2007), três ouros em Pan-Americanos, ela encerra a carreira na seleção brasileira como recordista absoluta de jogos: 233.

Mas fora de campo, Formiga nunca teve o devido reconhecimento. “Acho que o Brasil ainda deve muito à Formiga. O peso dela é imensurável. Ela deveria encerrar a carreira como melhor do mundo. Infelizmente, acho que o mundo vai ficar devendo a ela essa conquista”, disse Dilma.

Formiga é do tamanho da eternidade. Que a Arena da Amazônia esteja repleta de torcedores dar a ela o amor que tanto merece depois de 26 anos de tanta dedicação à seleção.

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