Joanna sobre Biles: ‘Doenças de alma não se curam, você aprende a lidar com elas’

Antes de os Jogos Olímpicos de Tóquio começarem, todo mundo dizia que esses seriam os Jogos de Simone Biles. Todo o mundo mesmo, literalmente. E vai ter gente achando agora que, pelo fato de a americana ter conquistado “só” duas medalhas (uma prata no individual geral e um bronze na trave) e não ter disputado as outras finais para as quais se classificou, isso não se concretizou.

Longe disso. Esses estão sendo os Jogos Olímpicos de Simone Biles porque, em vez de cumprir as expectativas do mundo, ela ousou contrariá-lo. E lançou para todos nós uma discussão que precisava acontecer. Muitos atletas já haviam alertado para isso, mas o impacto da decisão de uma das melhores do planeta ao não entrar na disputa por medalha olímpica em várias finais da ginástica fez com que não fosse mais possível “fugir” do tema. A saúde do atleta não tem só a ver com o físico, tem a ver com o mental.

Em conversa com as Dibradoras, a ex-nadadora Joanna Maranhão falou sobre a coragem de Simone Biles.

“Eu vejo a atitude dela como extremamente corajosa. Acho que fácil é você vestir um personagem. O senso comum, o status quo, ele pedia e pede que Simones e Joannas e mulheres que passam por isso (abuso, depressão), que escondam. Esconde, finge que nada aconteceu, vai lá, salta, ganha tua medalha olímpica, vai lá, nada e ganha medalha. O status quo pede isso”, afirmou a ex-atleta, que até hoje tem a melhor colocação da natação feminina na piscina em Jogos Olímpicos (quinto lugar em 2004).

“A partir do momento que tem pessoas contra o status quo, isso é extremamente corajoso. Ela vai para o ginásio, torce pelas amigas, ela não tá querendo fugir. Ela continua treinando, buscando, tanto que foi para a final da trave. Não tem desistência, não tem fraqueza nisso. É a tentativa de sobreviver a experiências que você não escolheu ter.”

Foto: Getty

Joanna Maranhão foi uma das primeiras a mencionar um aspecto muito importante que estava sendo deixado de lado na discussão sobre a saúde mental de Simone Biles. No programa “Ohayo”, do Sportv, a ex-nadadora e comentarista do canal nestes Jogos lembrou que esta era a primeira Olimpíada que Biles estava disputando após o escândalo de abuso sexual do médico Larry Nassar ter vindo à tona. A ginasta foi uma das dezenas de sobreviventes e falou sobre o caso pela primeira vez em 2018. “A experiência de ter sua integridade violada como atleta…em algum momento essas memórias te engolem”, disse a nadadora no programa.

 

Não dá para superar

Muita gente usa o termo “superar” para falar de Simone Biles ou de outros atletas que tenham passado por abuso ou depressão (ou ambos, como é o caso de Biles e da própria Joanna Maranhão). Mas não há como deixar esses traumas para trás. Não há cura para as “doenças da alma”, como bem definiu a ex-nadadora.

“Uma experiência como essa, você não supera. Você aprende a lidar. Por exemplo, quando ela diz que odiava voltar ao lugar onde ela sofreu isso (abuso), ela não tinha superado, era algo que ela tinha que enfrentar porque ela tinha que ir pra lá para treinar”, afirmou Joanna.

Foto: CBDA

“No meu caso, aconteceu na piscina do Náutico. Eu passei anos sem ir pra lá, não gostava nem de passar na frente. Eu fui abusada em 1996, minha mãe diz que eu cheguei a competir na piscina do Náutico em 1997. Eu não lembro disso. Eu retraí essas memórias completamente. Em 2013, o Náutico voltou a ter competição lá e eu tinha que ir porque era Pernambucano. A minha mãe teve que me dar a mão, meu psiquiatra segurando a outra, eu tendo crise de choro pra conseguir entrar naquele parque aquático de novo. Não é fácil. E assim a questão do gatilho, pode ser que bata de maneira forte e pode ser que tenha dia que não bata. Não tem uma ordem cronológica”, relatou Joanna, lembrando a experiência pela qual ela própria passou no início da carreira com um treinador no Recife.

“Acho que é isso que as pessoas têm dificuldade de entender. Quando você tem alguma lesão física, você tá vendo aquilo, faz ressonância, tá lá. Mas as doenças da alma não se curam, você aprende a lidar com elas. Não tem cura. A cicatriz da ferida vai estar sempre ali para te lembrar”.

Grito dos atletas

A discussão levantada por Simone Biles não é inédita. Há atletas falando sobre isso há bastante tempo. O esporte de alto rendimento traz pressão e transforma a relação do atleta com a modalidade que sempre praticou. Se eles começam por diversão, ainda na infância, quando vira uma profissão, é preciso sempre lembrar a essência que os trouxe até ali.

“De um modo geral, quando você coloca na balança, se tá sendo mais sofrimento do que prazeroso, não faz sentido. E e ela tá certa. Ela tá completamente certa. Não é que ela sinta dor, ela não está cansada do treino, e tal, é outro tipo de cansaço”, disse Joanna Maranhão.

Simone Biles conquistou bronze na trave em Tóquio (Foto: Reuters)

Simone Biles mencionou exatamente isso. Que não estava mais conseguindo se divertir na ginástica. E que percebeu que sua presença ali, competindo, era mais para cumprir o que os outros esperavam dela do que para fazer algo que realmente queria.

Há outros atletas que já falaram sobre isso. Michael Phelps, o nadador considerado um dos maiores atletas de todos os tempos, o maior campeão olímpico da história, chegou a ter depressão e mostrou seu apoio a Biles nesta Olimpíada. A tenista Naomi Osaka, com apenas 23 anos, também passou por isso e chegou a sair de um Grand Slam neste ano para cuidar de sua saúde mental.

“Os atletas estão falando isso há muito tempo, é a gente que não tá escutando. E a gente não tá escutando porque a gente tá preso a essa ideia do ‘no pain, no gain’, se superar, performance, mindset. E eu não to dizendo que isso não faz parte, isso faz parte. E Simone mostrou que isso é uma parte muito importante para ser a atleta extraordinária que ela é. Mas não é somente isso”, destacou Joanna.

“Michael Phelps, quando a gente fala dele, a gente esquece que tá falando de um cara que teve depressão e tentou suicídio, porque a gente sempre fala do cara que tem 28 medalhas olímpicas, a gente esquece do sofrimento mental. Não quer dizer que não valeu a pena. Mas tem esse outro lado também. Tem atletas gritando sobre isso há muito tempo, mas a gente não estava escutando porque a gente não estava preparado pra ouvir. E Simone é muito importante porque ela traz isso nesse momento, no contexto de pandemia em que todo mundo ainda está muito perdido, e talvez por esse contexto e por ser quem ela é as pessoas estejam mais abertas a escutar”, completou.

Que a discussão não pare por aí. E que a coragem de Simone Biles sirva para nunca mais esquecermos: atletas não são máquinas, são, antes de tudo, seres humanos.

Compartilhe

Facebook
Twitter
Pinterest
LinkedIn

Uma resposta

  1. Autor de abuso sexual, deve ser punido com mais rigor,este,destrói vidas,não apenas a vida do abusado,mas, todos os que convivem comeu sofrimento.Na maioria das vezes,o abusador não fez apenas uma vítima.Minha solidariedade e amor a todos os vitimado por essa prática tão cruel!

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *