O jornalismo esportivo é um espaço desigual, onde homens e mulheres não têm as mesmas condições e oportunidades de trabalho – até aí nenhuma novidade. Porém, quando para além do gênero, avaliamos a raça dos envolvidos na cobertura esportiva, isso se torna ainda mais discrepante. Podemos contar nos dedos quantas mulheres negras estarão frente às câmeras brasileiras nas Olimpíadas e talvez uma mão só baste.
Mas se tem uma palavra da qual a mulher negra não foge, essa palavra é luta. E a história dela, que agora passa a ser nossa, começa assim. Marcada por sonhos, conquistas, desafios e música, conheça Karine Alves.
A trajetória de Karine na comunicação não começa no sonho de ser jornalista, mas em querer cantar como Elis Regina. Natural Rio Grande do Sul e vinda de uma família onde a música sempre esteve muito presente, foi ali que ela descobriu a sua voz. Entre 14 e 15 anos ganhou um violão do pai, que apostou que seria algo passageiro. Não foi. Sozinha, Karine aprendeu a tocar e passou a se apresentar na igreja, em festas, passou a fazer aula de canto e ali encontrou seu primeiro amor.
Ao mesmo tempo, fazia parte do grupo de jovens da igreja católica, onde além das atividades musicais, se dedicava a visitar asilos, orfanatos e a escrever o jornal da igreja. Ali, ela despertou para mais uma paixão: se comunicar. Ouvir histórias, escrever, falar, enfim, se comunicar. Se a música lhe deu voz, a comunicação mostrou o caminho. Mas ela quase se perdeu.
Quando chegou o vestibular, a escolha era óbvia, menos para ela: Karine resolveu fazer biologia. Na escola, células, DNa´s e estruturas chamaram sua atenção e baseada nisso, ela fez sua escolha. Felizmente (pra nós) ela não passou. Ao contar para a mãe da melhor amiga, ouviu a verdade que até então ignorava: o jornalismo era o caminho. Desenvolta, falante, expressiva, boa ouvinte e contadora de histórias, a decisão estava tomada. Mas não foi fácil.
Que coisa mais linda essa entrada da @KarineAlves_tv! A primeira ao vivo dela direto de Tóquio! Cheia de informação, carisma e lembranças boas de parte dela e do Galvão. Tô que tô só orgulho! Feliz, feliz! pic.twitter.com/pc2tM0s5fC
— Bianca Molina (@biimolina) July 13, 2021
Enquanto o pai deu todo o apoio e a incentivou a seguir o próprio coração, a mãe teve medo. Mulher, negra, pobre, sem parentes ou amigos numa área difícil. Deveria procurar uma área mais segura, como o direito. Num churrasco de família, chegou a ouvir “tá pensando o que? Que vai fazer TV por acaso?”. A resposta a gente já sabe, mas até lá, muita água passou por debaixo dessa ponte.
Como o destino não brinca, ela passou no vestibular e combinou com os pais de pagarem os 50% não cobertos pela bolsa que ela conseguiu na PUC-RS, enquanto trabalharia para arcar com as demais despesas. No primeiro período, sem experiência, trabalhou de graça na faculdade. Depois, passou a trabalhar em dois estágios, saindo de casa às 6 da manhã e retornando meia noite. Dessa fase, a maior lembrança são as broncas da mãe quando, cansada, ela adormecia com o prato de comida na mão.
Eu quero ser repórter
Nos estágios, Karine trabalhou com várias coisas, até perceber que o que tocava o seu coração era o público. Ela queria ser repórter. A primeira tentativa foi na Rádio Gaúcha, seguindo um conselho de um colega. Chegou até a terceira etapa, mas não foi aprovada. A tentativa seguinte foi a Band, quando de 50 candidatos, ficou em segundo lugar após um longo processo e pensou em desistir.
No caminho de volta pra casa, a mãe avisou que ela foi convidada para um processo seletivo na RBSTV, afiliada local da Rede Globo. Ela não acreditou e por pouco não deixou a oportunidade passar. Eram mais de 100 candidatos para 3 vagas e mesmo desacreditando, ela foi selecionada para trabalhar num programa de música.
No estágio, aprendeu a editar e mesmo ouvindo que não era papel de jornalista e que isso a afastaria do que ela sonhava, aceitou uma vaga fixa para trabalhar na ilha de edição. Mais uma vez, o conselho do pai foi determinante “você está se formando e não temos condição de te sustentar mais. Você precisa fazer a sua vida e começar de algum lugar.”
Na ilha, trabalhou com as mais diversas editorias e convivia com o questionamento de porquê continuar na edição depois de formada, já que o sonho era ser repórter e ali ela estava esquecida. A resposta era sempre a mesma: eu quero ser repórter e por isso estou aqui.
O sonho realizado
O destino de Karine mudou quando a hoje apresentadora Alice Bastos Neves foi trabalhar na TV. Colega de faculdade e conhecedora do sonho de Karine, ela avisou de um teste para repórter temporária.
Ao se candidatar para o teste, foi avisada pela chefe Carmen Lopes que as chances eram nulas, já que ela tinha um contrato com a emissora e a vaga era temporária. Hoje, de Tóquio, Carmen e Karine ainda se falam. Foi o primeiro teste de vídeo da carreira. Na cara e na coragem, ela comprou roupa nova, se produziu e foi atrás do sonho.
Dias depois, a pessoa responsável pelo teste perguntou porque ela queria ser repórter, e ao saber do amor que Karine nutria pela comunicação, disse que lutaria por ela. Com duas semanas de reportagem, passou a produzir matérias para o Globo Esporte e outros programas nacionais da emissora. Ela ficou de 2 a 3 anos trabalhando com esporte olímpico e passou a atuar nos jogos de futebol. Com a saída de Alice, ela passou a apresentar o RBS Esporte.
Depois da RBS, foi trabalhar como apresentadora e repórter na Fox Sports, onde conquistou o público com a simpatia e o sorriso aberto que lhe são característicos. No ano passado, voltou a TV Globo, onde foi a primeira apresentadora negra do Globo Esporte em 15 anos da atração.
Ubuntu: Eu sou porque nós somos
Ser mulher negra não é fácil, ser a única mulher negra num espaço sabidamente machista e racista, muito menos. Karine sabe bem disso e deixa claro que está ali para revolucionar. A apresentadora costuma aparecer sempre com os cabelos naturais ou de tranças, não se esconde atrás de truques de maquiagem que disfarçam os traços negros e não foge quando o assunto é representatividade. E sobre isso, quem fala é ela:
“É interessante falar de representatividade porque quando eu comecei como repórter esportiva eu era a única negra fazendo esse papel, depois fui a única em outra emissora e essa solidão foi me acompanhando. Eu tive que desbravar um caminho, porque nós mulheres temos que desbravar e a mulher negra tem ainda mais. A representatividade era escassa e hoje ainda é pequena, e eu faço questão de acompanhar o trabalho de outras meninas negras porque eu gosto de ver que está vindo um grupo novo, que tem mais gente pra me acompanhar nessa missão, que essa solidão vai acabar um dia”, disse.
“E eu penso muito que eu não trabalho só pra mim, pra minha empresa, eu trabalho pensando em outras gerações que virão, em outras mulheres que querem desbravar que nem eu, que querem seu lugar ao sol e eu quero que elas tenham mais facilidade, que não passem por tanta coisa que eu passei pra chegar onde eu cheguei, que elas possam se desenvolver com mais naturalidade, conseguir ter acesso aos estudos e às empresas de uma forma mais justa, com mais equidade, eu acho que meu papel é esse”, reforçou.
Karine Alves hoje está em Tóquio realizando a cobertura do maior evento esportivo do mundo, os Jogos Olímpicos. Ela ainda é a única mulher negra na frente das câmeras na TV Globo, mas espera abrir caminho para outras.
“É trilhar esse caminho que ainda está com mato mas a gente vai andando e abrindo, e sempre vai precisar de alguém que faça isso, quanto mais mulheres a gente tiver fazendo isso mais a gente vai conseguir enxergar o que tem depois desse matagal e também quem vem atrás consegue ver com mais facilidade. Mas é claro que é um longo caminho, eu queria que as coisas estivessem mais evoluídas mas ainda temos muita coisa pela frente.”