Brasil teve “só” duas camisas 10 em Olimpíadas: Sissi e Marta

Nordestinas, dotadas de talento puro com a bola nos pés e que desafiaram a lógica da sociedade machista para fazer aquilo que mais amavam: jogar futebol. Estamos falando de Sissi e Marta, as únicas jogadoras que vestiram a camisa 10 do Brasil em Olimpíadas.

Desde 1996, quando o futebol feminino estreou nos Jogos Olímpicos de Atlanta, apenas essas duas mulheres conseguiram tal feito em seis edições. E é simbólico perceber tantas semelhanças em suas trajetórias, até mesmo se pensarmos que nenhuma delas contou com o apoio necessário para se desenvolverem no esporte.

Sem oportunidades, treinamentos e materiais esportivos adequados, elas ganharam notoriedade e marcaram seus nomes na história da modalidade. E ainda assim, até hoje, muitos são capazes de taxá-las de “amarelonas” e justificarem que essas mulheres não foram valorizadas porque não ganharam nada.

Ora, se com pouco investimento que receberam foram consideradas as melhores de suas gerações, imaginem se tivessem toda a estrutura ideal para bater de frente com equipes que já eram mais fortes e bem treinadas?

Foto: Getty

Duas camisas 10 de gerações diferentes com histórias parecidas

Sisleide do Amor nasceu em Esplanada, na Bahia. Marta Vieira da Silva é de Dois Riachos, em Alagoas. As duas precisaram resistir muito para que pudessem apenas “brincar” com uma bola. O desafio começou em casa, inclusive. Afinal, meninas não ganham bolas, ganham bonecas – então era preciso improvisar o futebol com a cabeça do brinquedo.

As duas saíram muito cedo de seus lares. Sissi fez parte da primeira seleção brasileira feminina da história quando ainda atuava na Bahia e depois ganhou notoriedade quando defendeu o São Paulo e conseguiu ganhar alguns títulos com a equipe do Morumbi.

Marta, aos 14 anos, entrou em um ônibus rumo ao Rio de Janeiro em busca de um sonho e foi no Vasco da Gama que iniciou sua caminhada rumo ao profissionalismo.

Sissi, nos anos 90, e Marta durante os anos 2000, viveram o auge de suas carreiras. A pioneira chegou a ser considerada a melhor jogadora sul-americana e em 2017, foi reconhecida internacionalmente como a 5ª melhor do mundo no século XX pela Federação Internacional de História e Estatística do Futebol (IFFHS). A premiação de “melhor jogadora do mundo” só existiu a partir de 2001, quando Sissi já estava na reta final da carreira e aí não deu tempo de colecionar um desses troféus.

Já Marta foi eleita por seis vezes como melhor jogadora do mundo pela Fifa entre os anos de 2006 a 2010 e em 2018.

É impossível contar a história da seleção feminina de futebol sem passar pela trajetória dessas duas jogadoras que, infelizmente não tiveram a oportunidade de atuarem juntas em campo. Mas cada uma delas, em seu tempo, foi peça fundamental nas principais conquistas do time brasileiro na história.

Sissi, a Imperatriz 

Meia-atacante habilidosa, Sisleide do Amor nasceu na Bahia, em 1967 – época em que a prática do futebol feminino era proibido por lei no Brasil (de 1941 a 1979).

Durante sua carreira, atuou pelo Flamengo de Feira de Santana, Bahia, Corinthians, São Paulo e Vasco da Gama. Mas foi fora do país que a jogadora ganhou mais destaque. Nos Estados Unidos, jogou por muitos anos no San Jose Cyberrays e pelo Califórnia Storm, onde se aposentou.

Aos 21 anos, participou do primeiro Torneio Experimental da Fifa, em 1988 – que viria a se tornar a Copa do Mundo Feminina em 1991.

Sissi na primeira Olimpíada do futebol feminino, em 1996 (Foto: Acervo Pessoal)

Com a seleção, ela disputou duas Copas do Mundo, em 1995 e 1999, conquistando a medalha de bronze na edição disputada nos Estados Unidos e marcando 7 gols.

Sissi foi camisa 10 e capitã na primeira edição dos Jogos Olímpicos em Atlanta-96 e na segunda, em Sidney-2000. Sob sua batuta, o time brasileiro alcançou a 4ª posição nas duas edições.

Na época dela, porém, não havia qualquer investimento ou reconhecimento da CBF ao futebol feminino. Sissi, aliás, era uma das líderes das jogadoras na hora de reivindicar o mínimo da confederação. Isso fez com que ela não fosse muito benquista ali.

A primeira grande camisa 10 da história do Brasil encerrou sua carreira sem sequer um jogo de despedida ou agradecimento por parte da entidade maior do futebol. Não há sequer uma menção a ela no Museu da Seleção Brasileira, montado na sede da CBF. E a mulher que um dia foi rejeitada no seu país por conta de um cabelo raspado, hoje é muito mais reconhecida fora do território brasileiro do que por aqui.

Atualmente, Sissi atua como técnica de clubes de base nos Estados Unidos e lá é vista como um grande ídolo para as meninas.

Marta, a Rainha

Tornar-se a Rainha do futebol não foi fácil para Marta, e sua trajetória de vida mostra isso. Ela começou a jogar futebol no juvenil do Centro Sportivo Alagoano (CSA), em 1999. No ano seguinte foi contratada pelo Vasco da Gama, onde jogou no profissional entre os anos de 2000 e 2002. Nessa época, fazia apenas 25 anos que as mulheres tinham conquistado o direito de praticar a modalidade no Brasil.

Do Vasco da Gama foi para o Santa Cruz Futebol Clube de Minas Gerais, onde permaneceu entre 2002 e 2004. E depois disso, o país ficou pequeno para ela.

Foi na Suécia, defendendo o Umea IK, que seu futebol passou a ser reconhecido mundialmente. Depois, atuou pelo Los Angeles Sol, Santos, FC Gold Pride e Western New York Flash. Em todos os clubes, Marta colecionou títulos e artilharias das competições.

(Foto: Ivo Gonzales/O Globo)

De volta à Suécia, defendeu o Tyresö FF por dois anos e, em 2014, foi contratada pelo FC Rosengard. Em 2017, Marta foi anunciada como a nova contratada do Orlando Pride dos Estados Unidos, clube que defende até hoje.

Na seleção, ela é dona absoluta da camisa 10 desde 2003 e de recordes individuais. Em sua primeira participação em Jogos Olímpicos, já subiu ao pódio após chegar à decisão do torneio e ficar com a medalha de prata em Atenas-2004. No ano seguinte, mais uma vez, o time brasileiro chegou perto do ouro olímpico, mas acabou com novamente na segunda colocação.

Marta também foi a camisa 10 da seleção em Londres-2012 e na Rio-2016, quando a equipe não conseguiu resultados expressivos. Agora, em Tóquio-2020, disputará sua 5ª Olimpíada com o status que lhe foi atribuído por muitos: a maior jogadora de todos os tempos.

A brasileira foi indicada pela primeira vez ao prêmio de Melhor Jogadora do Mundo em 2003 quando tinha apenas 17 anos. Levou seu primeiro troféu três anos depois. Ininterruptamente, foi soberana de 2006 a 2010 e voltou a ganhar o prêmio em 2018.

Nomeada pela ONU Mulheres como embaixadora global da Boa Vontade para mulheres e meninas no esporte, o papel da atleta é dedicar seus esforços a apoiar o trabalho pela igualdade de gênero e empoderamento em todo o mundo, inspirando mulheres e meninas a desafiar estereótipos e superar barreiras, inclusive no esporte.

Enquanto jogadores gozam de patrocínios vitalícios com marcas esportivas, Marta completa, mais uma vez, um ciclo olímpico sem ter patrocínio de nenhuma marca esportiva. Desde a Copa do Mundo de 2019, na França – quando se tornou a maior artilheira dos Mundiais entre homens e mulheres -, suas declarações são pautadas na equidade de gênero. Usando chuteiras pretas estampando apenas um símbolo nas cores rosa e azul, a jogadora justamente joga luz ao tema.

(Foto: Getty Images)

“Eu continuo sem patrocínio. Antes mesmo de iniciar essa campanha (na Copa) a gente recebeu propostas, até de renovação, mas acho que a valorização tem que partir da gente. Eu me sinto no direito de me valorizar, por tudo que a gente foi conquistando ao longo do tempo seja dentro de campo ou fora dele também. Eu queria dar esse exemplo pra outras atletas e até outras atividades fora do esporte, para que a gente possa buscar por igualdade. Juntas”, afirmou Marta em entrevista ao Esporte Espetacular em setembro do ano passado.

Fim de ciclos

Sissi se ressente demais em ter se aposentado sem conseguir ter uma partida oficial de despedida. “Uma coisa que eu ainda guardo com muita mágoa é o fato de não ter me despedido da seleção da maneira que eu queria. Eu não consegui fechar esse ciclo da maneira que eu achava que merecia por tudo o que eu fiz”, afirmou a ex-atleta às Dibradoras. “É o que eu sempre falo, quando eles forem lembrar da história, meu nome ainda vai estar lá. O que importa é o que eu fiz, se não estiver no museu (da CBF), vai estar na memória das pessoas”, concluiu.

Em poucos dias, Marta entrará em campo para disputar provavelmente sua última Olímpiada, no Japão. Aos 35 anos de idade, ainda não sabemos dizer se veremos a jogadora envolvida com o futebol feminino mesmo após a aposentadoria, mas legado às novas gerações não há de faltar.

O que esperamos no futuro é que as próximas camisas 10 da seleção – que até então foi muito bem representada nos últimos anos por Sissi e Marta -, saibam a real importância que esse manto tem. Que as próximas consigam – como fizeram as pioneiras – levar o nome do Brasil a outro nível dentro do futebol. E claro, que sejam reconhecidas e não precisem sofrer tanto quanto suas antecessoras.

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