São casos diferentes, mas semelhantes por essência. Tanto a corredora sul-africana Caster Semenya, quanto a ginasta americana Simone Biles, são esportistas extraordinárias. Os resultados delas vão muito além do esperado para mulheres. E por fazerem o que ninguém espera ver de um corpo feminino, há sempre uma tentativa de controlá-las.
Começando pelo caso mais recente. Simone Biles tem tudo para ser O NOME dos Jogos Olímpicos de Tóquio. Não há nenhum outro atleta entre homens e mulheres em qualquer modalidade que esteja no nível dela em termos de performance, resultados e “encantamento”. É incrível ver o que Biles consegue fazer. Da mesma forma que o nadador Michael Phelps e o corredor Usain Bolt eram “os nomes” a serem vistos e aplaudidos na Olimpíada do Rio, a americana é a principal atração dos Jogos de Tóquio.
Ainda mais depois de ter conseguido mais um feito inédito e inacreditável. No último sábado, ela executou um movimento que nunca nenhuma mulher havia conseguido fazer em uma competição. O “Yurchenko” levou o nome da russa Natalia Yurchenko, que foi pioneira na técnica que conduz o atleta à mesa de costas para a posição do salto.
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— (@Iobaznyuk) May 23, 2021
Mas o movimento inclui ainda algo mais complexo, que só havia sido tentado por homens: “primeiro se lançar, apoiar-se sobre as mãos, de costas, na mesa de salto, e depois se impulsionar a uma altitude suficiente para permitir dois giros completos em posição carpada (corpo dobrado, pernas estendidas) antes de concluir a manobra pousando em pé”, conforme descreveu reportagem do New York Times sobre o salto.
É ainda mais incrível ver como Biles executa o movimento com naturalidade, fazendo-o parecer simples. Só não dá para dizer que foi um salto perfeito em termos técnicos porque ela precisou dar uns passos para trás na aterrissagem para controlar sua rotação.
A decepção da nota
O que era de se esperar da nota da arbitragem após executar um movimento que nenhuma outra atleta mulher no mundo jamais conseguiu fazer? Para o “impossível”, o mínimo que se espera é o máximo, para dizer de forma bem simples.
Mas não foi o que aconteceu. Para contextualizar: na ginástica, cada movimento já tem uma “nota base”, assim as ginastas já sabem qual pontuação podem atingir dependendo do salto que executam. No entanto, deram ao Yurchenko uma “nota base” (6,6) muito parecida com qualquer outro movimento de menor nível de dificuldade. E qual seria a explicação para isso? Não incentivar outras mulheres a executarem o movimento que seria “perigoso demais” para elas.
“Parte do motivo pode ser uma preocupação com a segurança de ginastas menos habilidosas que Biles –ao atribuir a um movimento perigoso um valor inicial baixo, a federação estaria discretamente desestimulando o risco de outros atletas. Mas também pode haver medo de que Biles seja tão boa que ela varreria qualquer competição de que participasse ao simplesmente executar uma série de manobras que as rivais não são capazes, ou não ousam, tentar”, afirma o New York Times.
Os dois motivos mostram uma coisa que sempre ficou clara ao longo da história das mulheres no esporte: a tentativa de controlá-las. Se o movimento “Yurchenko” é perigoso para elas, por que não seria perigoso também para eles, homens, que o executam há algum tempo? Se é preciso desincentivar mulheres a tentá-lo, por que não adotar a mesma medida de segurança com os homens?
A outra possível “justificativa” é ainda mais estarrecedora. Segurar a nota de Biles porque isso geraria uma “distância muito grande” de suas concorrentes é “segurar” a performance de todas as mulheres que poderão vir depois dela. O fato de ter uma referência tão boa quanto é Simone Biles faria com que mais mulheres da ginástica treinassem e buscassem a excelência que ela conseguiu. Assim como Michael Phelps vencia suas provas com uma distância enorme de seus adversários e fazia com que eles fizessem de tudo para um dia conseguirem alcançá-lo.
Alguém tentou parar Phelps? Alguém pensou em estratégias para conter a rapidez do “raio” Usain Bolt? Então por que estão buscando formas de controlar o desempenho acima da média de Simone Biles?
“As notas foram baixas demais, e eles sabem disso”, disse Biles. “Mas eles não querem que os competidores se distanciem demais. É problema deles. Não é problema meu. Criaram um código de pontuação aberta e agora se irritam por haver pessoas muito à frente das demais e se superando”.
Para finalizar, resumiu: “Vou continuar fazendo esses movimentos porque eu posso”.
Caster Semenya
O caso da sul-africana Caster Semenya é diferente, mas também expõe uma tentativa de “controle de performance” das mulheres no esporte. A corredora é bicampeã olímpica e tricampeã mundial nos 800 metros e seus resultados sempre chamaram a atenção por serem “bons demais”.
Diziam que Semenya “parecia um homem”. Por isso, desde os 18 anos, ela foi submetida a testes para comprovar sua “feminilidade”. Exames genéticos e também exames genitais, colocando a atleta numa situação bastante constrangedora. Tudo para comprovar que a sul-africana era mesmo uma mulher.
Na genética, Semenya tem uma diferença comum a algumas mulheres. O cromossomo sexual dela não é XX, e sim o XY. Com isso, ela produz, de forma natural, mais testosterona do que é considerado “normal” para mulheres.
A Federação Internacional de Atletismo passou a exigir que Semenya tomasse remédio para controlar essa produção de testosterona, mas a atleta sofreu com ganho de peso, cólicas e outros efeitos que a fizeram desistir. Ela apelou à Justiça Desportiva, mas perdeu todos os recursos nos tribunais e não poderá buscar o tricampeonato olímpico em Tóquio.
A história das mulheres nos Jogos Olímpicos mostram que sempre fizeram de tudo para tentar controlá-las. Primeiro, elas não podiam sequer competir. Agora, até podem, mas não podem ser tão boas. Não podem ser tão rápidas. Não podem “ousar” fugir do padrão que eles estipularam para elas.
Como já citamos aqui, já repararam que ninguém nunca desconfiou de qualquer “anomalia” em Michael Phelps? O maior campeão olímpico de todos os tempos sempre teve resultados acima da média, destoando de todos os rivais, e o sentimento que ele despertava nas pessoas era: QUE INCRÍVEL O QUE ELE CONSEGUE FAZER. Usain Bolt, muito mais rápido do que os adversários, também sempre foi exaltado por seus feitos.
Mas quando uma mulher ousa ser acima da média, a resposta é QUE ESTRANHO. E aí passam a desconfiar dela. A tentar pará-la.
A moral da história é que o mundo vai sempre tentar nos limitar. Mas nós não temos preguiça de lutar – até mesmo pelo direito de sermos EXTRAORDINÁRIAS – no esporte e na vida.