‘Levou tempo pra aceitar meu cabelo, não tinha referência na TV’, diz Garay

Foto: FIVB

Fernanda Garay é hoje uma jogadora de vôlei campeã olímpica e reconhecida como um grande talento dentro de quadra. Como atleta de projeção nacional, vira e mexe está também na TV, seja em algum programa falando da sua carreira ou em alguma transmissão da Superliga feminina. Mas quando estava crescendo em Porto Alegre como uma menina negra em meio a uma cidade que tem população 82% branca, Garay sentiu falta de ver na televisão alguém que fosse igual a ela.

As idas para a escola de van eram uma tortura. Ela e o irmão eram sempre os alvos das “brincadeiras” sobre a cor da pele e o cabelo, e Garay voltava para casa chorando todos os dias por causa disso. A mãe, também negra, tinha o cabelo liso, mas sabia exatamente o que fazer para mostrar à filha que as características dela eram motivo de orgulho, não de vergonha.

“Eu lembro de voltar pra casa chorando, mas minha mãe sempre foi uma mulher maravilhosa e sábia. Ela me colocava na frente do espelho e falava: ‘tu é linda. Olha esse olho, olha esse cabelo. Tu é linda, tem que se valorizar’. Isso foi definitivo pra construção do meu caráter”, contou Fernanda Garay em entrevista às dibradoras.

Vivendo num estado onde a população era majoritariamente branca, convivendo com crianças em uma escola onde ela e os irmãos eram praticamente os únicos negros, e sem encontrar sequer na televisão alguma mulher da sua cor ou com o cabelo igual ao seu para se identificar, Garay por muito tempo se sentiu sozinha. O processo de se aceitar como uma mulher negra foi longo e dolorido, mas hoje ela vê uma evolução nessa “desconstrução do padrão de beleza”.

Foto: Divulgação Dínamo Krasnodar

“Eu me sentia muito sozinha. Mas tenho na família mulheres muito fortes que me ajudaram muito na construção de caráter e autoestima. Tinha minha mãe, que me levantava e não me deixava abalar.”

“Passei por momentos difíceis de me questionar, sofrer. A coisa do cabelo é muito difícil. Essa coisa de se descobrir, se encontrar, é um processo longo. Não tinha referência na TV. Hoje, eu vejo o quanto a gente deu passos importantes na representatividade, nessa desconstrução do padrão de beleza. Antes, eu não conseguia comprar um creme para o cabelo. Hoje, dá gosto de entrar na loja de cosméticos”, afirmou a ponteira.

Agora, como jogadora conhecida de vôlei e campeã olímpica, Garay já não sente os mesmos olhares preconceituosos do passado. Ela também nunca passou por situações de racismo dentro de quadra, como aconteceu por exemplo com o oposto Wallace em 2012, quando jogava pelo Cruzeiro. Mas ao acompanhar o que tem sido frequente com jogadores de futebol, Garay admite que não sabe qual seria sua reação se sofresse algo parecido.

“Teve o caso que aconteceu com a americana do Minas, a Deja McClendon, num jogo contra o Praia, mas o ataque foi virtual, não foi em quadra. Eu falei com ela na época, falei nas minhas redes sociais também. Mas acho que gritos racistas da torcida são um golpe muito baixo. Porque você não pode se defender. O atleta tem o desafio de se manter focado na partida com qualquer tentativa de te tirar do jogo. Só que isso é um paradoxo muito grande, porque instintivamente você vai querer sair do jogo, é um crime, é algo que fere.”

Foto: Divulgação

Chegada a São Paulo: a ‘gaúcha negra’

Fernanda Garay é filha de ex-jogador de basquete, mas foi no vôlei que ela se encontrou. Com 1,80m já na adolescência, a menina despontou no Sul e, aos 15 anos, se mudou para São Caetano para seguir a carreira no esporte. Ali, via muitos estranharem quando ela respondia de onde era. “Porto Alegre? Mas uma gaúcha negra?”, questionavam. Mas conforme foi ganhando fama nas quadras, os comentários preconceituosos foram diminuindo.

“O vôlei me ajudou muito nesse sentido. Eu ter me destacado cedo me ajudou, porque aí já fui ficando conhecida e não ouvia mais isso”. Uma das melhores temporadas da carreira dela aconteceu entre 2009 e 2010, quando vestia a camisa do Pinheiros. Ficou a expectativa de ser chamada para a seleção principal, mas isso só aconteceu no fim de 2010, quando duas outras ponteiras foram cortadas por lesão – Mari e Paula Pequeno. Ao chegar em Saquarema, Paula quebrou o gelo: “Duas tiveram que se machucar pra você vir? Pô, já era pra tu estar aqui”.

Ouro olímpico

A convivência com a ponteira veterana sempre foi muito boa, o que ajudou muito em 2012 quando, em meio à crise da seleção feminina em quadra nos Jogos Olímpicos, Garay assumiu a titularidade no lugar de Paula para não sair mais do time. A campanha da equipe de Zé Roberto, que chegou a Londres para defender o ouro conquistado em 2008, foi desastrosa. E depois de uma derrota inesperada para a Coréia do Sul por 3 a 0, parecia que tudo estava perdido. Uma reunião entre jogadoras e comissão técnica, porém, resgataria a autoestima daquele grupo, que protagonizou jogos épicos e garantiu uma conquista marcante para um time que redefiniu o significado de “jogo coletivo” para o vôlei.

“No nosso pior momento, a gente entendeu que tinha que fazer o coletivo ser mais forte. Foi esse entendimento pra nossa virada”, contou Garay. E no jogo mais marcante da campanha – as quartas-de-final contra a Rússia – isso ficou evidente. Foi Sheilla quem se destacou no tie-break salvando cinco match points, mas as defesas de Garay, Jaqueline e Fabi, os levantamentos de Dani Lins, e os bloqueios de Fabiana e Thaisa também foram essenciais para construir aquela vitória. E antes do desespero de ficar atrás no placar, aquela seleção teve tudo para abrir 12 a 9 num ataque de Garay que caiu dentro da quadra russa – só que o juiz deu bola fora.

Foto: CBV

“A gente já tinha passado tanta coisa naquela Olimpíada, que não tinha mais o que abalar. E eu lembro de olhar pra Sheilla e entender: a gente não vai perder esse jogo. Ali, eu senti o peso que a Rússia tinha para aquela geração. O 24 a 19 marcou muito, a raiva, a vontade de ganhar da Rússia tinha algo a mais. Eu fui contagiada por isso. E fui muito testada naquele jogo, elas só sacaram em mim nos match points e eu não podia errar. Mas eu pensava: os caras roubaram uma bola minha, a gente não vai perder. A gente vai ganhar duas vezes”, contou.

O Brasil ganhou aquele jogo, depois atropelou o Japão e venceu as favoritas americanas na final de virada por 3 a 1. Calhou do ponto do ouro ter sido marcado por Garay, numa conquista em que a união do time fez a diferença para uma reviravolta épica.

“Foi o time que mais jogou como time. Eu já participei de outros grupos muito bons que trabalhavam muito bem coletivamente, mas ali foi uma coisa muito rápida. A gente teve que se recuperar muito rápido. E na dificuldade, o time apareceu”.

Foto: COB

Pós-pandemia

Com a temporada da Superliga cancelada, Garay espera agora a pandemia passar para poder voltar à rotina normal dos treinos e seguir para suas últimas temporadas no vôlei. Com duas Olimpíadas no currículo (um ouro e uma eliminação precoce em 2016), a ponteira está com 34 anos e já fala em planos pós-carreira. Ela pretende seguir trabalhando com esporte, mas ainda quer buscar um respiro dessa rotina quando deixar as quadras.

“Eu tenho receio do futuro, mas tem que manter o otimismo. Espero que a gente consiga uma vacina, que os times consigam se organizar pras próximas temporadas. Porque a gente precisa se mover nesse sentido de otimismo. Eu sei que já estou chegando no final da carreira, efetivamente tenho trabalhado num projeto paralelo com meu irmão, uma coisa diferente de vôlei. Mas não me vejo distante do esporte. Só não quero ter a rotina de estresse”, finalizou a ponteira.

 

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