Multicampeã, Fabi sonha com futuro ‘além do rosa e da boneca’ para filha

Foto: Arquivo Pessoal

Ao ler o comentário maldoso de um seguidor na sua foto do instagram anunciando a gravidez da companheira, Fabi nem conseguiu sentir raiva ou retrucar. Ali em janeiro de 2019, mesmo em meio a tantas incertezas sobre o futuro da sua família (que não é considerada “tradicional brasileira”), a bicampeã olímpica do vôlei estava tomada de amor e nada mais importava. O sonho de ser mãe finalmente se tornaria realidade.

“Grávida, como? Milagre”, foi o que escreveu um homem na foto em que Fabi aparecia abraçando a barriga de Julia em uma cachoeira. “Pode ser também. Chame como achar melhor. Muito amor pra você”, ela respondeu. Amor foi o que não faltou para ela e a esposa desde que Maria Luiza chegou na vida delas em julho do ano passado. Faltaram algumas noites de sono, é verdade, e sobrou um pouco de cansaço, mas nada que um sorriso dela não apague em questão de segundos. Para quem sempre gostou de desafios dentro de quadra, Fabi enfrenta agora do lado de fora o maior deles em toda a sua vida: o de criar uma menina verdadeiramente livre em um mundo que ainda é cheio de amarras para elas.

“A maternidade é um aprendizado diário. É um desafio enorme colocar um ser humano no mundo, tentar passar pra ele valores, princípios, coisas inegociáveis. Ter a missão de formar uma pessoa, trazer pra pessoa a primeira impressão do mundo, é um grande desafio”, contou a ex-jogadora ao blog.

 

“Eu vivi essa ‘limitação’ por ser menina. Meus pais brigavam comigo porque eu estava sempre brincando com os meninos. Por uma questão cultural enraizada, tinha essa coisa da boneca. Eu sempre deixei claro que boneca não era meu brinquedo de maior interesse. Mas para ter a bola eu tive que pedir muito. Pra Maria, a gente quer apresentar tudo. Como meta, a gente tem isso, que ela tenha liberdade nas escolhas até de compra das coisas. Mas vai buscar brinquedo ou roupa que não seja rosa ou de brilho, é uma dificuldade gigantesca”, relata.

Não é que Fabi e a esposa sejam “contra” o rosa. Mas elas querem que a filha vá além dessa cor. Saiba que existem outras que ela pode gostar também. E que existem brinquedos além das bonecas, das brincadeiras “de casinha”. Mas quando vão comprar algo para a menina, as seções de roupas ou brinquedos de crianças das lojas já dão o recado.

Foto: Arquivo Pessoal

“As peças de roupa da loja são separadas por gênero, as seções de brinquedos também, nada é por idade. Tentei não ser radical, mas a primeira coisa que a gente tentou fazer era fugir do rosa. Desmistificar. Ela ganhou presentes, tem coisas rosas lindas. Mas a gente quer ir além da cor. A gente teve uma outra sorte que o meu cunhado teve nenê muito próximo, e é um menino. Eles também pensam muito parecido com a gente e ficamos torcendo pra que os dois sejam parceiros, que consigam ser menino e menina convivendo juntos, brincando os dois de bola, de boneca, de tudo o que quiserem, está tudo certo”.

Quebrando preconceitos

Fabi se aposentou das quadras aos 38 anos em 2018 jogando em altíssimo nível na sua 13ª final de Superliga com o Rio de Janeiro. Nessa época, ela e a namorada já haviam tentado a gravidez pela primeira vez com uma inseminação que não deu certo. Quando tentaram de novo – depois que a líbero parou de jogar -, a confirmação veio justamente um dia após a eleição de Jair Bolsonaro como presidente do Brasil.

“Na segunda tentativa, e eu descubro exatamente um dia apos a eleição do Bolsonaro. O momento era de polarização. A gente tinha certeza que a gente estava ameaçada enquanto família. A gente até casou, a gente quis se proteger como família mesmo, porque era o discurso que se propagava, era a sensação que se tinha naquele momento, como família homoafetiva a gente estava ameaçada. E foi nesse sentido também que postei a foto mostrando a Julia grávida. Era uma forma de reafirmar que minha família existe e iria continuar existindo independentemente de qualquer coisa”, disse a ex-jogadora.

Fabi encerrou a carreira com 10 títulos da Superliga pelo Rio de Janeiro (Foto: Acervo Pessoal)

As descobertas de Fabi e Julia na maternidade não se restringiram ao dia a dia com a bebê. Antes mesmo de ela chegar, as duas perceberam o quanto ainda existia um preconceito das pessoas com relação a uma família com duas mães.

“Sempre nos perguntavam se era menino ou menina. E aí falavam que era melhor que fosse menina, porque menino sentiria falta da presença masculina. Mas poxa, quantos meninos foram criados só por mulheres? Pela mãe, pela avó. Quantos não tiveram um pai como referência? Isso mudou alguma coisa para eles? Então isso é falta de conhecimento. Eu sempre respondia com esse questionamento, porque era uma forma de fazer a pessoa pensar, e o debate legal é esse, refletir em cima de um questionamento.”

Pós-carreira

Dois anos depois de ter parado com a rotina de atleta, Fabi não abandonou por completo o esporte. Nos últimos tempos, ela estava se dedicando a treinamentos para disputar provas de triatlo (que ficaram para depois, já que agora a prioridade é o tempo dedicado a Maria Luiza), e, profissionalmente, virou comentarista de vôlei do SporTV, o que a mantém próxima da modalidade.

Foto: Divulgação FIVB

Hoje, ela está realizada assim e confessa que planejou bastante o momento da aposentadoria para que não sentisse o vazio comum aos ex-atletas logo que param de jogar. Mas não descarta também um futuro como treinadora. A ausência de mulheres em postos como esse ainda incomoda a bicampeã olímpica.

“É algo que me incomoda hoje a gente não ter nenhuma mulher comandando algum time na Superliga, e são raríssimas mulheres em comissões técnicas também. Ao mesmo tempo eu pensava que pra eu me tornar treinadora, eu teria que voltar pra mesma rotina de atleta que já estava muito difícil. Então deixei isso para o futuro. Mas é algo que eu penso ainda mais pra frente”, contou.

Como comentarista, a rotina de trabalho permite que Fabi fique mais tempo com a filha ao longo do dia (já que os jogos costumam ser no horário noturno) e faz com que ela estude e conheça também um outro olhar sobre o jogo, de fora da quadra.

“Fui atrás de como era fazer daquilo (comentários) uma profissão. Aí você tem aquela ânsia de atleta de se preparar, treinar para tudo o que você vai fazer. E eu fui me inteirar do mundo do vôlei de forma mais dinâmica”, contou.

Depois de comentar os Jogos Olímpicos ainda quando jogava (mas estava aposentada da seleção) em 2016, Fabi analisa o momento da seleção feminina hoje como ainda um pouco instável pela renovação que ainda não se concretizou após a saída da bicampeãs olímpicas.

“A gente olha de certa forma com preocupação de continuidade. O grande segredo do vôlei ao longo dos anos foi a constância, conseguir chegar, estar sempre no pódio, trazer medalhas, essa sempre foi a carta de apresentação, ser contínuo. O que acabou tendo foi uma lacuna aí. Acho que foram poucas as meninas que apareceram pra dar uma continuidade. Hoje, vejo até que temos boas perspectivas, mas não é o cenário ideal”, avaliou.

“Não temo por resultados. Temo pra gente viver um momento de instabilidade no futuro próximo.”

Se a filha dela pode ser o futuro de uma nova geração para o vôlei? “Eu gostaria muito que ela gostasse de esporte. Mas aqui ela vai ter liberdade para gostar do que quiser”, finalizou Fabi.

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