Campeão carioca, campeão brasileiro e campeão da Libertadores. O Flamengo teve um ano dos sonhos no futebol e calou todos os críticos. E, diante do sucesso dentro de campo, não dá para esquecer o caminho trilhado fora dele para que isso fosse possível: anos de uma reestruturação financeira e uma gestão responsável deixaram o clube em condições de montar a seleção que tem hoje no elenco para poder brigar sempre por títulos. Hoje, o Flamengo não é só o time da maior torcida do Brasil – é também o time com o maior poder de investimento do país e, por isso, pode sonhar alto nos próximos anos e se manter no topo.
Foi um caminho quase perfeito até aqui. Faltou apenas um detalhe, um assunto que o Flamengo parece sempre se esquivar na hora de comentar – o investimento no futebol feminino. O clube mantém uma parceria com a Marinha desde 2015, onde é responsável apenas por organizar logística, enquanto o setor de exército paga os salários, oferece a estrutura de treinos e comanda a gestão da equipe. Nem mesmo a montagem do elenco fica nas mãos do Flamengo, já que as atletas precisam passar em concurso militar para poderem vestir a camisa rubro-negra. E a decisão sobre prioridades de disputa também é da Marinha – o que fez com que o time feminino desistissem de disputar a Libertadores neste ano para jogar os Jogos Mundiais Militares.
A grande “reclamação” dos clubes de camisa sobre a obrigatoriedade de investir no futebol feminino (em regra imposta pela Conmebol e pela CBF) é a “falta de dinheiro” para bancar um projeto que não tem, na cabeça deles, retorno financeiro. Pois bem, se tem algum clube que não pode reclamar de falta de dinheiro, é o Flamengo. O superávit de 2019 deve chegar a mais de R$74 milhões (dados de outubro). Além disso, o argumento de que o futebol feminino “não dá retorno” está começando a ficar pra trás. Já estão começando a surgir patrocinadores para os times femininos – o Corinthians, por exemplo, conta com a Estrela Galícia na equipe das mulheres e já tem boas propostas para ampliar isso no ano que vem; o São Paulo tem a Giuliana Flores; o próprio Campeonato Brasileiro feminino ganhou patrocínio da Uber. Será que o clube da maior torcida do Brasil não seria capaz de atrair marcas interessadas em apoiar o futebol feminino rubro-negro?
Quando procurado, o Flamengo diz que a parceria com a Marinha “é ótima para os dois lados”. E questionado sobre possíveis planos futuros para assumir essa gestão, o clube desconversa e dá uma resposta pouco objetiva.
“O clube trabalha com um planejamento a longo prazo. Hoje temos a categoria Sub-18, que disputou o Brasileiro da categoria (e ficou em quinto lugar com apenas cinco meses de trabalho) e o Campeonato Carioca. Estamos investindo nessas meninas, dando todo apoio possível e vamos manter tudo isso nos próximos anos. Nessa edição do Carioca Adulto, algumas jogaram no time profissional e a ideia é que essa transição aumente mais em 2020. Temos a Maria Peck, atleta nossa de apenas 15 anos, que foi convocada recentemente para a Seleção Brasileira Sub-17 e é considerada uma das melhores do país na posição e na categoria. Pretendemos fazer mais peneiras no Rio de Janeiro (como já fizemos duas esse ano) e seguir buscando atletas. Nós queremos fidelizar o futebol feminino e ajudar a modalidade a crescer ainda mais no Brasil”, afirmou Vítor Zanelli, vice-presidente do futebol de base (pasta em que está o futebol feminino).
A torcida já cobra há algum tempo um comprometimento maior do Flamengo com o futebol feminino. Na final do Carioca neste ano, mas uma vez se ouviu na arquibancada o grito: “Não é mole, não, assume logo o feminino do Mengao”.
Mas a reportagem apurou que existe uma resistência interna quanto à participação do clube no futebol feminino. Alguns dirigentes não têm interesse e demonstram até certo desprezo pela modalidade. Até mesmo para conseguir um posicionamento para esta reportagem, foi preciso insistir bastante na comunicação, e nenhum pedido de entrevista formal com o responsável do clube pelo futebol feminino foi aceito – até porque, formalmente, não existe uma pessoa específica que cuide da gestão da modalidade de perto.
O que o Flamengo (e muitos outros clubes) ainda não enxergaram é que o futebol feminino hoje não deve ser pensado como um “projeto social”, nem ter caráter “beneficente”. Há inúmeros sinais de que esse é um mercado com potencial enorme, aqui e no resto do mundo. Não à toa a Copa do Mundo feminina na França bateu recordes de audiência e de interesse de mídia e patrocinadores. Não é por acaso que a “Womens Super League” na Inglaterra já tem patrocínio milionário da Barclays e segue aumentando a média de público a cada jogo (e o investimento dos clubes também). A Espanha tem um crescimento expressivo também de audiência e de público nos estádios – tanto que as atletas que jogam no pais chegaram a entrar em greve para pedir melhores pagamentos e condições de trabalho de um negócio que já começa a ser lucrativo para os clubes que investiram nele. No Brasil, chamou a atenção também a audiência de jogos do Brasileiro e do Paulista feminino, além do recorde de público de quase 30 mil pessoas na arena Corinthians na final do estadual. Para o Brasileiro de 2020, já existe disputa de TVs para definir quais canais irão transmitir. O momento não poderia ser mais propício. E não dá pra negar o potencial do Flamengo, tanto para investir, quanto para lucrar com o futebol feminino
Vale ressaltar: há ainda que se questionar sobre a forma como o clube tem lidado com as famílias que reivindicam indenizações pela tragédia do Ninho do Urubu. Um dos episódios mais tristes da história do Flamengo que ainda está muito mal resolvido.