No fim de 2017 e início de 2018, Tifanny Abreu viveu seu melhor e seu pior momento como atleta. Ali ela realizava o sonho de disputar a Superliga feminina, principal torneio do vôlei brasileiro, pela equipe de Bauru, mas ao mesmo tempo se deparava com uma chuva de mensagens agressivas e até ameaças pelas redes sociais. Por ser a primeira atleta transexual a atuar no torneio, Tifanny enfrentou muito preconceito dentro e fora de quadra ao longo de toda a temporada.
O auge veio em janeiro de 2018 com a ex-jogadora Ana Paula, que escreveu uma “carta aberta o COI” publicada em sua coluna no Estadão dizendo que Tifanny não deveria ser autorizada a jogar com mulheres. As próprias atletas e os clubes, inclusive, começaram a questionar se seria adequado ter uma jogadora transexual atuando na Superliga feminina e levaram a questão à Confederação Brasileira de Vôlei (CBV). Nos ginásios, Tifanny era frequentemente vaiada também pelas torcidas rivais.
Mas nesta segunda temporada, parece que a tempestade finalmente passou. Não há mais tanta resistência, nem tanto preconceito, conforme descreveu a própria atleta às dibradoras.
“Essa segunda temporada está sendo mais tranquila, né, aquela tempestade já passou. As pessoas já viram que é uma coisa que vai acontecer daqui pra frente, mais mulheres trans vão aparecer jogando, porque elas estão no direito delas, o direito de jogar”, afirmou Tifanny.
“Eu espero que mais times possam abrir as portas para outras atletas que estão precisando de trabalho. Eu estou jogando mais tranquila também, senti mais facilidade porque a torcida já não pega tanto no meu pé como antigamente, já é um grande avanço.”
No jogo acompanhado pela reportagem, o Bauru venceu o Fluminense no Rio de Janeiro por 3 sets a 0 e muitos torcedores vieram falar com Tifanny após a partida pedindo fotos e autógrafos. Há inclusive muitos homens e mulheres trans que acompanham a carreira da jogadora e vão aos jogos para apoiá-la. A representatividade que ela carrega significa muito para uma minoria que ainda vive muito marginalizada na sociedade.
“No mundo, já é possível ver homens trans disputando campeonatos masculinos e mulheres trans disputando torneios femininos, porque é onde nós nos enquadramos. Depois de uma transição, a gente passa a ser do outro sexo. O esporte tem que ser esse lugar que abre as portas para todos”, disse.
“Agora já passou aquele alvoroço, aquela novidade, todos viram que eu vou jogar normal, vou errar e vou acertar como todas, já não tenho mais aquele potencial que tinha antes”.
Inclusão
Há exatamente um ano, Tifanny viveu o momento mais difícil da carreira, quando seu bom desempenho dentro de quadra gerou as críticas do lado de fora por ela supostamente “levar vantagem” como atleta transexual. Surgiram muitos “especialistas” para dizer que o fato de ela ter se desenvolvido como homem até a vida adulta significaria uma superioridade para ela com relação às outras atletas.
No entanto, a aprovação de Tifanny como atleta de alto rendimento no vôlei veio do próprio Comitê Olímpico Internacional, que estabelece critérios de nível de testosterona no corpo para classificar as categorias “feminino” e “masculino” do esporte.
Segundo a endocrinologista Berenice Bilharinho de Mendonça, referência nacional em distúrbios do desenvolvimento sexual e consultora do COI para inclusão de pacientes latino-americanos com distúrbios do desenvolvimento sexual no esporte, há uma perda de força grande quando se perde o nível desse hormônio no corpo.
“É importante pontuar que Tifanny tem uma produção de testosterona bem abaixo do que apresenta uma mulher cis. Uma vez que você retirou a fonte de testosterona, ela perde muito a força que tinha. Mas quanto tempo você precisa para retirar completamente o efeito dessa testosterona? Não há estudos que determinem isso. Quando você tira a testosterona, o que fica com o indivíduo de ganho em relação a mulher cis? Essa é a resposta que não se tem por enquanto, não há estudos especificamente sobre isso”, afirmou a médica às dibradoras ainda no ano passado, no auge da polêmica.
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“Há outras mulheres tão altas e fortes quanto (Tifanny). E o vôlei não é só altura, tem que saber jogar também. A questão aqui deveria ser o direito da pessoa fazer esporte ou participar de qualquer coisa dentro do sexo social que pertence, e isso para mim é impossível de se recusar”, prosseguiu.
Agora, porém, as atletas já têm uma relação muito melhor com Tifanny e entendem tudo o que ela representa no esporte. A “novidade” de início gerou bastante discussão e até resistência por parte das jogadoras, que agora já têm tido uma postura diferente com relação ao tema.
“Tudo que é novidade gera uma resistência natural, é normal. Mas acho que hoje todas conheceram a Tifanny e viram que ela é uma jogadora como todas nós”, disse a líbero Arlene, que disputou todas as edições da Superliga até aqui e hoje é companheira de Tifanny no Bauru.
“Acho que tem tido uma aceitação maior, as pessoas começaram a enxergar a Tiffany não só como jogadora, mas como pessoa. Acho que a curiosidade mesmo das outras pessoas de conhecê-la, conhecer a história da vida dela, tem naturalizado a presença dela no nosso meio”, pontuou Naiane, levantadora que jogou pelo Barueri na temporada passada e agora joga no Bauru.
O que mais se questionava a respeito do desempenho de Tifanny era a força de seu ataque, que seria “maior” do que a das outras atacantes da Superliga. No entanto, a líbero Fabi, que fez sua última temporada no vôlei em 2018 atuando pelo Sesc-RJ, tem uma visão diferente a esse respeito.
“Eu posso te falar com a minha consciência tranquila de que eu não vi nenhuma anormalidade na força que ela tem, algo que ela em tese teria vantagem. A Tifanny tem uma força parecida com a de outras atletas. Então de jogar contra ela, posso dizer que não vi nenhuma superioridade dela com relação a outras atacantes”, disse às dibradoras.
A ex-jogadora da seleção brasileira reforça a importância que a presença de Tifanny em quadra tem para levantar um assunto muito importante: a inclusão e a diversidade no esporte.
“Eu a vejo como representante de um assunto que as pessoas precisam procurar saber, se inteirar e respeitar. Os transexuais hoje têm um lugar muito específico para ocupar na sociedade, então quando eles começam a sair disso, as pessoas se incomodam. Eu quando a encontrei, fui falar com ela, fui buscar histórias de outras pessoas, fui estudar sobre isso mesmo. Que ela seja a primeira, que seja realmente uma pessoa que cause desconforto em relação aos estudos e etc. Que existam mais lugares para os transexuais ocuparem – alem da prostituição, que é onde as pessoas aceitam”, reforçou Fabi.
“Meu olhar é muito mais acolhedor, de respeitar o lugar que ela está ocupando, o passo que ela está dando. Jogando contra ela, a gente viu muitas pessoas no ginásio se sentindo representados pela Tifanny. Tem uma causa muito maior por trás disso. Fico feliz do vôlei contribuir para esse debate.”
Tifanny também espera que mais portas se abram no Brasil para atletas transexuais se inserirem no mercado. A jogadora ressalta que hoje em dia sente muito mais o respeito das outras atletas e das torcidas do que o preconceito, que foi tão forte no ano passado.
“É muito importante essa minha passagem pelo vôlei no Brasil para que abra as portas para outras meninas trans que estão chegando aí. Eu tenho que agradecer muito ao Sesi e ao Vôlei Bauru, porque é exemplo para outros clubes. O respeito que eu estou tendo dentro de quadra e fora de quadra está muito maior agora. O mundo está mudando e nós temos que mudar junto com ele, concluiu.