O que aprendemos com Tifanny

O universo transexual ainda é muito desconhecido para a maior parte das pessoas. Mulheres e homens trans existiram – ou melhor, resistiram – por muito tempo apesar de se ignorar sua presença e se negar sua existência.

O esporte, então, que historicamente sempre foi uma área extremamente machista e homofóbica, também ficou alheio aos transexuais por muito tempo. Até que veio Tifanny para mudar o curso da história.

A regra que permitia pessoas transexuais atuarem no esporte já existia há alguns anos no Comitê Olímpico Internacional, mas ao menos no Brasil, não havia sido usufruída por ninguém. Foi quando Tifanny surgiu, primeiro na Itália, como primeira mulher transexual a atuar em uma liga feminina, depois aqui no Brasil, disputando a Superliga.

Tifanny foi pioneira e isso é essencial para nos ensinar a pensar em um mundo mais inclusivo para a população transexual.

Mas por ter sido a primeira, muita gente não soube como lidar com ela. Nós não soubemos lidar com ela – e precisamos fazer esse mea culpa aqui sobre alguns erros que cometemos no debate sobre esse tema.

Desde o primeiro momento que ouvimos clubes e atletas questionarem a participação de Tifanny na Superliga, preferimos nos abster da opinião técnica (que não diz respeito a nós, mas aos órgãos a quem competem definir isso esportivamente), mas reforçamos nossa posição por um debate que fosse inclusivo, e jamais exclusivo.

Ou seja, independente do que fosse discutido como critério esportivo, para nós seria essencial que a pergunta que os órgãos competentes deveriam responder seria: como fazer para INCLUIR Tifanny e outras mulheres e homens transexuais no esporte? E que jamais poderia ser considerada a hipótese de excluí-la ou proibi-la de jogar.

Mas erramos muito na maneira como abordamos o tema em um podcast no início de 2018, na falta de um estudo aprofundado sobre ele, nas escolhas erradas de termos para essa discussão. Por isso, após uma semana inteira de conversas com ativistas transexuais e especialistas da causa, decidimos expor aqui o nosso aprendizado diante de tudo isso.

O esporte já foi, por muito tempo, um ambiente de exclusão – de negros, de mulheres, de pessoas com deficiência, de gays, de trans. Aos poucos e com muita luta, fomos (e ainda seguimos) transpondo essas barreiras, para transformar o esporte no que ele deve ser: sinônimo de diversidade, de respeito e, principalmente, de inclusão.

Um resumo do que aprendemos em quatro pontos:

O nome de nascimento de uma pessoa transexual nunca deve ser mencionado, é falta de respeito. “O nome de registro é esse fantasma que nos persegue e que muitas vezes é usado para nos ofender, humilhar, então tampouco deve ser trazido à discussão”, explicou a ativista trans, Amara Moira.

Tifanny é uma mulher. É, sim, uma mulher trans, mas acima de tudo é mulher como todas as outras mulheres e tratá-la como um ser humano à parte, como se ela se encaixasse numa “terceira categoria” também é desrespeitoso.

“Quando perguntam se o protagonismo das mulheres não será ameaçado com a presença de transexuais é uma forma sutil, mas bastante contundente, de dizer que não somos mulheres. Não há qualquer necessidade de usar pronomes masculinos para se referir a ela, mesmo quando estivermos falando do passado”, diz Amara.

– Ninguém “vira” transexual, nem “escolhe” ser transexual. As pessoas nascem transexuais. Isso faz com que elas sofram, desde a infância, a agonia de não sentirem que pertencem ao corpo que têm. E, mesmo quando fazem a transição (hormonal e/ou cirúrgica), enfrentam um preconceito enorme na sociedade. A própria transição não é um processo simples e dura no mínimo três anos. Ninguém se submeteria a todas essas dificuldades apenas para jogar um campeonato de vôlei. Essa suposição não faz nenhum sentido.

Vamos ouvir quem já passou por uma transição invasiva dessas e repensar esse absurdo? Vamos. Com vocês, Amara Moira:

A primeira coisa que nos dizem, quando falamos que desejamos fazer essa cirurgia, é que isso é loucura, que podemos nos arrepender, que isso não faz sentido. Ou seja, vê-se que a sociedade tem uma imaginação bastante fértil para pensar as consequências dessa cirurgia e a vida após ela. No entanto, essa mesma sociedade parece convenientemente esquecer toda essa imaginação ao lidar com as nossas existências concretas ocupando espaços de prestígio e aí começam a fantasiar que é possível aproveitadores, isto é, pessoas não trans, se submeterem a cirurgias mega invasivas como essa, lançarem mão de um tratamento hormonal que abala as suas estruturas e transformarem completamente a própria identidade apenas para poderem se beneficiar de vantagens em competições esportivas femininas.

Quem seria capaz disso? Já alegaram coisa similar para tentar impedir que acessássemos o banheiro feminino (“estupradores podem se vestir de mulher para abusar de mulheres nesse espaço”), já vislumbraram a possibilidade de pessoas mudarem de nome pra fugir de dívidas e crimes, agora essa questão com o mundo dos esportes, e o que se percebe, no final das contas, é que ainda hoje a sociedade só sabe nos ver com desconfiança, como fraudes, pessoas que ou tentam passar pelo que não são ou que representam perigo por abrir brecha para aproveitadores. E a realidade que encaramos é bem distinta disso.

Resistência e mesmo exclusão familiar, perseguição brutal nas escolas (muitas vezes acompanhada de abuso sexual, pois corpos que não se enquadram nos padrões de gênero são entendidos como corpos que pedem por sexo, corpos que podem ser abusados), a garantia de portas fechadas no mercado formal de trabalho… numa sociedade transfóbica como a nossa (Brasil, o país campeão mundial de assassinatos de pessoas trans), assumir-se trans pode em alguma medida ser até entendido como uma atitude suicida, o que não impede que mesmo assim a sociedade continue a nos ver e a nos entender como pessoas que tentam ou querem o tempo todo levar vantagem.”

– Discute-se uma suposta “vantagem esportiva” que Tifanny levaria dentro de quadra por ser uma mulher transexual. Mas pouco se fala sobre a desvantagem que ela enfrenta por ser transexual. O fato de ter sido o assunto da Supeliga não por seu desempenho esportivo, mas porque é uma mulher transexual com esse desempenho. O fato de ler mil notícias todos os dias a seu respeito, citando o nome de nascimento que ela quer esquecer, o corpo e as características “de homem” que ela não é mais, e uma chuva de preconceitos em absolutamente todos os sites e jornais – quando tudo o que ela quer é simplesmente viver a vida normal como mulher que efetivamente é e jogar o vôlei no espaço que tanto lutou para conquistar.

“É preciso pensar, sim, de que maneira pessoas trans poderão se fazer presentes no mundo dos esportes, o que implica discutir não só as vantagens mas também as desvantagens que a gente vai enfrentar. E, para além de discutir hipotéticas vantagens ou desvantagens, é importante que se discuta também formas concretas de eliminar o machismo e a LGBTfobia do mundo dos esportes”, opinou Amara.

Veja aqui a entrevista completa com Amara Moira sobre a importância de Tifanny para a população trans.

Para finalizar, um pouco de empatia – e de conhecimento médico

Conversamos também para essa matéria com a endocrinologista Berenice Bilharinho de Mendonça, referência nacional em distúrbios do desenvolvimento sexual e consultora do COI para inclusão de pacientes latino-americanos com distúrbios do desenvolvimento sexual no esporte. Ela esclareceu alguns dos argumentos físicos que tanto têm sido utilizados nesse debate.

Tifanny tem mais força do que as outras jogadoras? É importante pontuar que Tifanny fez toda a transição incluindo a cirurgia de castração e feminização dos genitais externos e sua produção de testosterona está bem abaixo do que apresenta uma mulher cis.

“Uma vez que você retirou a fonte de testosterona, ela perde muito a força que tinha. Mas quanto tempo você precisa pra retirar completamente o efeito dessa testosterona? Não há estudos que determinem isso. Quando você tira a testosterona, o que fica com o indivíduo de ganho em relação a mulher cis? Essa é a resposta que não se tem por enquanto, não há estudos especificamente sobre isso.

“Quando eu olho para ela em quadra, não me chama a atenção nem pela altura, nem pelo porte físico. Há outras mulheres tão altas e fortes quanto. E o vôlei não é só altura, tem que saber jogar também. Para mim, não parece nada excepcional. A  questão aqui deveria ser o direito da pessoa fazer esporte ou participar de qualquer coisa dentro do sexo social que pertence, e isso para mim é impossível de se recusar”, afirmou a médica.

Berenice Mendonça trabalha no Hospital das Clínicas da FMUSP e tem 150 pacientes trans em tratamento para fazer a transição. Ela reitera que o processo é lento, trabalhoso e que, pelo sistema público de saúde, a fila para a operação é imensa. “Fechamos a fila e temos pacientes para serem operados até 2022”.

“É um processo lento, bem lento, trabalhoso, tem que fazer terapia, avaliação psiquiátrica,
tratamento homonal, cirurgia, período de internação de 10 dias. Ninguém vai fazer isso só para jogar vôlei”, reforçou.

Para ela, a discussão em torno de Tifanny tem acontecido muito mais pelo preconceito do que por qualquer questão médica ou esportiva.

“Acho que são questões baseadas na desinformação ou na dificuldade da pessoa tolerar a diversidade.  O que vai incomodar ter uma mulher trans jogando vôlei? Por que há tanto incômodo com isso? Por  que a Tifany tem sempre que ser apresentada como uma mulher trans jogadora de vôlei e não apenas como uma nova jogadora de vôlei contratada por um time?”, questiona.

Diante da nossa experiência na conversa tanto com Amara Moira, quanto com Berenice Mendonça, o que está faltando em toda essa discussão talvez seja um pouco de empatia. De se colocar no lugar de uma população tão rejeitada, excluída e marginalizada como é a população trans e entender que esse debate precisa ir além do esporte. Precisa ser uma oportunidade de incluí-la em qualquer debate e deixá-la ocupar todos os espaços que lhes são de direito. Que possamos ser os homens e mulheres que quisermos, independente do órgão genital que carregamos, da cor que estampa nossa pele ou do sexo que nos atrai.

Veja também: Uma seleção feminina só com trans

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