*Por Anita Efraim, de Santiago (Chile)
Quando cheguei ao treino do Santiago Morning numa manhã de terça-feira encontrei uma pessoa dobrando roupas e preparando as malas da equipe para a próxima viagem. Roupeira? Ajudante do time? Não, era a técnica Paula Navarro, atual bicampeã da liga feminina do Chile.
“Entrar no campo e treinar é fácil, qualquer um faz. Aqui, faço tudo”, afirma. Paula é diretora técnica de todas as categorias do clube: sub-15, sub-17 e adulta. Ela se define como “head choach” de todo o feminino do Santiago Morning.
O clube venceu o campeonato em 2018 e em 2019 – esse último, mesmo sem jogar os playoffs. Com os conflitos no país, todos os torneios de futebol foram interrompidos. Como a equipe treinada por Paula estava em primeiro na tabela, levou o título.
Faz 15 anos que ela está no mundo do futebol profissional. Aos 47, Paula conta que chegou a jogar de forma amadora. “Na universidade jogava, mas me dei conta que não era tão boa, era melhor escolhendo jogadoras e armando equipes. Assim, me dediquei a estudar”. A técnica cursou educação física e se especializou como treinadora de futebol. Para ela, seu grande atributo é conseguir liderar grupos.
Paula cita como algumas de suas inspirações Marcelo Bielsa, técnico do Leeds com passagem pela seleção masculina do Chile entre 2007 e 2011, Carlo Ancelotti, do Everton, Pep Guardiola, hoje no Manchester City, e também Paco Seirulo, um dos pensadores do estilo do futebol do Barcelona.
O começo da carreira foi no Colo-Colo, time que tem mais títulos na liga nacional. Há 13 anos trabalha no Santiago Morning, mas só em 2019 conseguiu a equiparação salarial com o treinador do time masculino.
A equipe dos homens joga a segunda divisão do campeonato chileno. Quando Paula venceu o torneio pela primeira vez, passou a ganhar o mesmo que seu par. “É um prêmio pelo sacrifício, esforço de tantos anos e um reconhecimento do trabalho”, comenta a treinadora. Além de acreditar que o clube deu um exemplo de igualdade, ela garante que essa medida atraiu empresas para patrocinarem o Santiago Morning.
Em 2019, a equipe se tornou a primeira do país a estabelecer contrato profissional com as jogadoras da equipe feminina. Segundo Paula, hoje são cerca de 20 profissionais que contam com plenos direitos.
Questionada sobre o que fez para mudar o patamar o Santiago Morning, Paula afirma que o mais importante é o trabalho de gestão. “Não basta ser treinadora só dentro de campo, mas também fora. Fazendo projetos com o governo, com os municípios, com políticos, empresários… E também encantar a diretoria no clube com o futebol feminino, mostrar que tem potencial, que sim se pode desenvolver e, em algum momento, vender jogadoras – que é o objetivo do clube”.
Objetivos para 2020
No dia 20, o clube viajou para o Equador para fazer três amistosos: dois contra a seleção equatoriana, treinada pela técnica Emily Lima, e outro contra o Independiente del Valle. Por isso, Paula arrumava todos os uniformes da equipe naquele dia.
A temporada começa no dia 15 de março, quando o Santiago Morning enfrenta o Deportes Temuco fora de casa. O primeiro jogo no Estádio Municipal Peñalolen, onde o time treina e joga, será contra o Antofagasta.
Paula afirma que, quando jogam em casa, o público varia. Em jogos grandes, as arquibancadas de cimento ficam cheias: duas mil pessoas. Em outras partidas, a técnica estima que a média seja de mil torcedores.
A treinadora projeta um tricampeonato e, além disso, ela quer tornar o Santiago Morning no clube da diversidade e da inclusão, “onde ninguém é medida pelo lugar de onde vem, pela raça, religião, orientação política, mas pelas suas capacidades. Isso é muito importante”.
Os números dos uniformes da equipe são coloridos e chamados de “números da diversidade”, o que carrega essa conotação desejada por Paula.
O mais relevante neste ano para Paula é chegar a final da Copa Libertadores, que acontecerá em Santiago. “É um ano diferente, o campeonato vai ser no nosso país”, lembra Paula, que se preocupa com as equipes brasileiras. “O Brasil sempre tem grandes equipes e boas jogadoras. Eles estão mais avançados que nós no desenvolvimento do futebol feminino”.
Neste ano, o Brasil será representado na Libertadores por Ferroviária (equipe campeã brasileiras em 2019), Corinthians (equipe campeã da Libertadores 2019) e Avaí Kindermann (equipe 3ª colocada no Brasileirão).
Futebol Brasileiro
Para Paula, as políticas de incentivo ao esporte, no Brasil, permitem que o país desenvolva melhor o futebol feminino e encontre grandes jogadoras. “Eu sinto também que a visão que vocês têm como federação de futebol é muito mais avançada, muito mais aberta a integrar a mulher. Isso não é de agora, faz dez anos que fazem isso e é muito positivo”, disse a treinadora. Ela ainda colocou o Brasil como uma potência no futebol sul americano.
Em janeiro, o presidente da Associação Nacional de Futebol Profissional do Chile, Sebástian Moreno, tentou eleger uma mulher para a diretoria da instituição. Lorena Medel, diretora do Santiago Wanderers, seria a primeira mulher a ocupar um cargo na ANFP. No entanto, outros mandatários rejeitaram a indicação.
Seleção Chilena
Em 2019, o Chile participou da Copa do Mundo pela primeira vez em sua história. Para Paula, esse momento ajudou na valorização da modalidade do país. Ela esteve no mundial e assistiu dois jogos da equipe chilena. “A classificação foi muito positiva para o nosso país, é uma equipe que vem trabalhando faz mais de 12 anos, três ciclos olímpicos. Foi positivo porque tivemos mais visibilidade, mais cobertura da imprensa, as jogadoras ficam mais conhecidas”.
Paula ressalta que muitas jogadoras da seleção passaram pelo Santiago Morning. Inclusive, no treino da última terça-feira não estavam porque treinavam com a seleção. A treinadora explica que às segundas, terças e quartas essas jogadoras treinam com a seleção e quinta e sexta com o clube. “Para nós é um orgulho que tenham chegado lá (na seleção). Foi muito bonito e temos que seguir aprendendo dos melhores.
No mundial da França, o Chile não passou da fase de grupos. Foram três jogos: duas derrotas, para Estados Unidos e Suécia, e uma vitória, contra a Tailândia. Apesar de 5 gols sofridos, o destaque da seleção chilena foi a goleira, Christiane Endler, que atua hoje no PSG.
Paula classifica Tiane, como é conhecida a goleira, como “nossa embaixadora no mundo”. “É um caso muito especial. É difícil achar no futebol feminino goleiras com esse tamanho e com essas características. Para o Chile, ela tem um papel muito importante. Espero que ela sempre desenvolva um papel social”.
Em lojas e anúncios, é muito comum que Endler seja a cara de grandes campanhas publicitárias no país. A goleira foi indicada ao prêmio de melhor jogadora do mundo em 2019.
Em 2019, a seleção esteve no Brasil para o torneio Uber, do qual as chilenas foram campeãs. No quadrangular, elas venceram a Costa Rica e empataram com o Brasil. Nos pênaltis, levaram o título. Para a treinadora do Santiago Morning, o momento foi importante porque ajuda na confiança e na credibilidade da seleção. “Antes, as pessoas diziam ‘não, elas vão perder’, e agora as pessoas acreditam que sim, o Chile consegue.”
Paula afirma que não tem vontade de treinar a seleção chilena no momento. “Acredito que lá estão as pessoas indicadas. Mas eu gostaria de ir para fora, de preferência para os Estados Unidos”, conta.
O melhor do futebol
Para Paula, muito mais que os títulos, o importante é usar o futebol como ferramenta social: “com o esporte, as meninas melhoram sua qualidade de vida, conseguem bolsas na universidade, estudam e podem ser jogadoras profissionais, claro”. No Santiago Morning, a maioria das jogadoras estudam e, ao mesmo tempo, se dedicam ao futebol.
A treinadora garante que o que mais a deixa encantada com o esporte é poder mudar vidas e deixar um legado. “Não me interesse que a gente ganhe um campeonato, são várias taças guardadas. Pra mim, não serve.” Paula lembra de agradecimentos de atletas. Graças a ela, atletas conseguiram se formar na faculdade, seguir uma carreira ou comprar um imóvel.
Equidade
Questionada sobre o espaço das mulheres para treinar equipes masculinas, Paula afirma que acha que sim e conta que já foi ajudante técnica dos homens no Santiago Morning. “Acho que atual’mente, com tudo que acontece com as mulheres, os jogadores estão mais abertos a serem dirigidos por uma técnica”.
No entanto, ela duvida que dirigentes chilenos se atreverão a isso. “Eles têm um pouco de medo de nós, mulheres com poder e opinião”.
A treinadora relata que já sofreu muita discriminação por ser uma mulher em uma indústria majoritariamente masculina e que até já pensou em desistir – o que nunca aconteceu. “Uma das minhas características é que sou muito perseverante. Eu sofro, choro, mas no dia seguinte eu me levanto e sigo adiante. Sempre vejo o lado positivo de tudo.”