Imagine se olhar no espelho e não enxergar o que todo mundo vê. Sentir que você é uma coisa que seu corpo não mostra. Tente se colocar no lugar de alguém que passou a vida toda acreditando ser Marcela, quando, na verdade, sempre teve certeza de que era Marcelo.
“Fui entender o que acontecia comigo em 2015, quando comecei a ler sobre transexualidade. Até pra gente que passa por isso, tudo é um aprendizado. Não é de uma hora para a outra que tudo muda. É gradativamente que vai te incomodando. Até chegar uma hora que tudo incomoda, e aí não dá mais pra aguentar”, disse Marcelo às dibradoras. A história dele foi contada com muita sensibilidade e respeito pela repórter Joanna de Assis, da Globo, no webdoc “Metamorfose” lançado na última quarta-feira (29). Marcelo foi jogadora de futebol até 2019, brilhou pelo time feminino do Corinthians, foi campeão brasileiro em 2018 e, no fim do ano passado, decidiu fazer tratamento hormonal para que seu corpo pudesse parecer mais com a forma como ele se enxergava: um homem.
“As coisas foram acontecendo aos poucos. Até eu começar a entender que eu era um homem trans. Começou a me incomodar eu ser visto como jogadora de futebol. Eu queria ser visto como menino, não como menina. A cada temporada, aquilo ia me incomodando mais”, contou ele.
Na infância, Marcelo já sentia esse incômodo por ter de se vestir como menina. Ele conta no documentário um episódio de quando foi tirar foto 3×4 para o RG, e a mãe quis que ele vestisse uma roupa nova: uma saia azul e uma blusa de alcinha. Marcelo chorou muito para usar aquilo.
Apaixonado por futebol desde cedo, ele acompanhava o pai nos campos amadores, e jogava com os meninos na rua e na escola. Não podia disputar campeonatos, porque eles eram apenas masculinos. Até que a mãe encontrou uma equipe feminina para ele jogar. Daí em diante, foi só sucesso. Marcelo foi para a seleção feminina de futsal, foi três vezes campeão mundial, figurou entre as melhores do mundo até fazer sua transição para o campo. Nos gramados, viveu seu auge jogando a Champions League por um time da Sérvia, e depois conquistando o título do Brasileiro feminino pelo Corinthians em 2018.
Aquele campeonato foi um divisor de águas na vida de Marcelo. Jogando o melhor de seu futebol em campo, ele sofreu com lesões e teve uma depressão no meio da temporada. Voltou a tempo de jogar a decisão, fez gol, levantou o caneco e, na reunião com as jogadoras no círculo central do campo após o título, ele pediu a palavra. Agradeceu o apoio de do time, que o ajudou a estar ali naquele momento.
Em 2019, veio a recaída. E foi nela que Marcelo entendeu que era a hora de cuidar de si. “Por um momento, eu quis esperar o momento de parar de jogar para fazer a transição e o tratamento hormonal. Era complicado abdicar de uma carreira quando eu estava no auge. Mas aí, nessa recaída, eu entendi que não dava para ter as duas coisa.s Ou eu seria realizado pessoalmente ou seria realizado profissionalmente. As duas coisas já não encaixavam mais”, explicou.
Marcelo rescindiu com o Corinthians em setembro de 2019 decidido a começar o tratamento hormonal. A família dele descobriu recentemente sobre sua transexualidade – por causa da gravação do documentário, ele quis falar abertamente com os pais sobre tudo. Eles ainda o chamam de Marcela, mas deram o apoio de que precisava. E, no fundo, o nome é a última coisa que o preocupa.
“Eu sou de boa quanto a isso (nome) porque eu tive meu tempo pra entender, então não quero que seja nada forçado. Você fica 31 anos usando pronome feminino aí você vai mudar do dia para a noite? Até mesmo pra mim às vezes sai”, disse.
“Troquei meu RG, ficou pronto hoje (29 de janeiro), mas o que me incomoda mais atualmente ainda é a voz, o peito. As características mesmo. Ainda estou no início do tratamento hormonal, as mudanças vêm aos poucos.”
O ano de 2020 será o da transição para Marcelo. Depois que concluir o tratamento hormonal, ele quer tentar atingir o sonho que sempre teve: o de ser jogador de futebol. Aos 31 anos, ainda é difícil saber se isso será possível, principalmente levando em consideração o tabu que ainda existe sobre a presença de transexuais no esporte – ainda que, com relação a homens trans, não haja qualquer restrição recomendada pelo COI, já que a entidade entende que eles não levam “vantagem” com relação aos outros competidores masculinos, não se conhece nenhum caso no Brasil parecido com o de Marcelo.
Hoje é dia da Visibilidade Trans. E aqui está um trabalho jornalístico magistral pra falar da causa. A @joannadeassis contou a história de Marcelo, que conhecemos como Marcelinha, craque do @SCCPFutFeminino , campeão brasileiro pelo clube em 2018. Com muita sensibilidade, (+) pic.twitter.com/QPaVnvkg5o
— dibradoras (@dibradoras) January 29, 2020
“Se eu achar que tenho condição de render e de jogar em alto nível no futebol masculino, vou tentar”, afirmou ele, que se surpreendeu com tantas mensagens positivas após a divulgação do documentário com a sua história.
“Quando você participa de uma reportagem dessas, você está sujeito a qualquer tipo de comentário. Eu fiquei até um pouco impressionado. Recebi uma mensagem negativa, em meio a umas 500 positivas. É legal porque a gente percebe que a mentalidade das pessoas está aberta. Você vê que elas estão querendo o bem do outro, tentando ver a situação como ela é. Recebi muito apoio mesmo”.
“Às vezes eu queria que essa mudança fosse mais rápida. Mas o importante é cada dia que passa você começa a se enxergar mais da maneira que você quer se ver”.
PS: Tem gente que vai dizer que Marcelo “quis” ou “escolheu” ser homem. É importante reforçar que transexualidade não tem a ver com escolha. Também não tem a ver com orientação sexual (que diz respeito ao sexo pelo qual você se sente atraído). Uma pessoa trans é alguém que “possui uma identidade de gênero diferente do sexo designado no nascimento”. E identidade de gênero é a “experiência interna e individual do gênero de cada pessoa, que pode ou não corresponder ao sexo atribuído no nascimento, incluindo o senso pessoal do corpo (que pode envolver, por livre escolha, modificação da aparência ou função corporal por meios médicos, cirúrgicos e outros) e outras expressões de gênero, inclusive vestimenta, modo de falar e maneirismos”.