Com o crescimento recente do futebol feminino e a entrada de times de camisa para investir na modalidade, o mercado da bola das mulheres começa a se agitar um pouco mais nesta temporada. E uma notícia recente gerou grande repercussão e revolta de alguns torcedores do São Paulo. Isso porque a meia Ary Borges e a atacante Ottilia fecharam com o Palmeiras e vestirão a camisa alviverde neste ano.
Muita gente atacou as atletas nas redes sociais chamando-as de “mercenárias” pelo acerto com o rival tricolor. Mas como o mercado do futebol feminino é um universo ainda pouco conhecido para grande parte dos torcedores, vale aqui contextualizar um pouco essa realidade antes de julgar as jogadoras pelo negócio.
Primeiramente, é preciso esclarecer duas coisas: jogadores e jogadoras de futebol são empregados como qualquer outro do clube. Se recebem uma proposta de emprego melhor, é justo que decidam pelo que será mais interessante para eles(as). Além disso, especificamente no contexto de São Paulo e Palmeiras no futebol feminino, é importante destacar que enquanto o São Paulo oferece uma estrutura limitada para suas atletas – elas dividem academia e campo com os associados, treinam em gramado sintético e já tiveram até atividades interrompidas antes da hora porque os sócios iriam usar a dependência -, o Palmeiras tem uma estrutura completa oferecida pela prefeitura de Vinhedo no interior.
Mas vamos aos fatos para entender como é a realidade do mercado no futebol feminino:
– Contratos de um ano e sem garantias
A maioria dos contratos das jogadoras de futebol que atuam no Brasil tem duração de um ano. Isso significa que elas têm emprego “garantido” apenas por esse período. Às vezes, o vínculo chega a ser ainda mais curto – quando não é informal, sem qualquer contrato assinado.
É raro também encontrar clubes que ofereçam carteira assinada para as jogadoras. Isso garantiria a elas direitos trabalhistas como 13º salário, seguro desemprego, entre outras coisas que, para uma profissão que ainda é muito pouco valorizada no Brasil, poderia fazer grande diferença. O Corinthians, por exemplo, melhor clube de futebol feminino em atividade por aqui, não assinava a carteira de suas atletas até 2019.
Quando se fala no futebol masculino que “o jogador está livre pra assinar um pré-contrato com outro clube seis meses antes de seu vínculo com o atual acabar”, essa é outra realidade que não existe no feminino. Como os contratos são de um ano, não há essa regra de pré-contrato. Além disso, não faz muito sentido falar em “a jogadora saiu de graça”, porque no futebol feminino quase toda jogadora sai de graça. A negociação da saída costuma acontecer quando o contrato dela acaba – e, quando eventualmente isso acontece antes é por conta de um acordo que fez sentido para os dois lados.
O mercado entre as mulheres ainda não está tão aquecido a ponto de um clube “comprar o passe” de uma jogadora. Na Europa, isso já acontece, mas por aqui a negociação costuma ser entre atleta e clube e apenas por condições de trabalho, sem o valor de um passe para a transferência.
É claro que com mais clubes (e principalmente clubes de camisa, que têm orçamento maior) entrando na jogada, a tendência é que esse tipo de negócio comece a mudar em breve e haja uma disputa maior pelas melhores jogadoras aqui no Brasil. Mas, ao menos por enquanto, essa não é uma realidade.
– Dispensas frequentes e até encerramento de atividades de um clube
É muito difícil no futebol masculino ver um time dispensando 10, 15 jogadores ao final de um ano. Isso porque os contratos deles costumam ser mais longos e custa muito caro rompê-los antes do término. Mas no futebol feminino, os clubes muitas vezes se reformulam completamente de um ano para o outro – justamente porque os contratos das jogadoras se encerram em dezembro.
O Grêmio, por exemplo, dispensou 14 atletas ao final de 2019. O Cruzeiro também passa por grande reformulação com troca de técnico e mudança de boa parte das jogadoras.
O clube que mais conseguiu manter sua base para 2020 até agora foi o próprio Corinthians, campeão da Libertadores em 2019, que já anunciou renovação de contrato com suas principais atletas – as zagueiras Erika e Pardal, a lateral Tamires, a meia Gabi Zanotti, a atacante Vic Albuquerque, entre outras.
O fim de um ano no futebol feminino pode ser tão trágico que muitas vezes significa o fim do investimento de um clube na modalidade. O Sport, por exemplo, tinha decidido acabar com a equipe feminina em 2019 após ter caído para a Série B no masculino. Só que o clube perdeu o prazo para comunicar isso para a CBF e precisou montar um time amador às pressas para disputar o Brasileiro feminino e não correr risco de sofrer punição no time dos homens. Resultado? O clube ofereceu apenas ajuda de custo a jogadoras que tinham que manter outros empregos e treinavam duas vezes na semana em um campo de grama altíssima e mal cuidado.
– A maioria sobrevive com salários mínimos
Esqueçam os salários astronômicos dos jogadores de futebol. Essas cifras já são raras se você considerar o universo todo do futebol masculino – um estudo da FGV em 2019 mostrou que 45% dos jogadores ganha até um salário mínimo (R$998), 42% ganha até dois salários mínimos e somente 4% ganham mais de 20 salários mínimos. Mas o universo do futebol feminino é ainda mais complicado, porque a própria elite da modalidade (jogadoras que atuam na primeira divisão do Brasileiro) ganham em média até dois salários mínimos por mês.
Esses dados foram revelados por uma pesquisa realizada pelo UOL em 2017 com jogadoras das 16 equipes da Série A1 na época. Três em cada quatro delas recebia até R$ 1,8 mil por mês. Naquele ano, o maior salário não passava de R$5 mil.
Hoje, essa situação melhorou um pouco com os clubes de camisa investindo um pouco mais. Mas a média de salário nos principais clubes do país ainda não passa de R$ 3 mil. Raríssimas exceções no Brasil conseguem ganhar um salário de dois dígitos (R$10 mil ou R$20 mil). E isso é coisa que só três ou quatro clubes no futebol feminino têm condição de pagar – e olhe lá. Lembrando que são valores que representam uma porcentagem irrisória da folha salarial do futebol masculino. No São Paulo, por exemplo, o custo total do investimento feito no futebol feminino em 2019 equivale a menos de dois salários de Daniel Alves (que ganharia R$1,5 milhão por mês no clube).
Considerando tudo isso, não dá para chamar uma jogadora de futebol hoje de mercenária. Na realidade delas, não tem como colocar “rivalidade” acima de condições de trabalho que podem ser melhores em outros clubes. A briga de uma atleta ainda é para garantir um emprego todo ano, e não alguns milhões a mais para engordar a poupança.