Islândia é muito mais do que só a “queridinha” da Copa

O presidente islandês e a primeira-dama ‘batendo uma bolinha’ na sala (Foto: Reprodução)

Imagine um lugar onde as mulheres andam nas ruas – em quaisquer ruas, sejam elas mais escuras ou mais iluminadas – e passam por homens tranquilamente sem ouvirem nenhum assovio, grito de “gostosa”, “delícia” ou “tribufu”. Imagine que não importa o que elas estejam vestindo, nenhum homem desconhecido na calçada vai fazer qualquer comentário sobre seu corpo.

Imagine que, nesse lugar, meninas e meninos têm aula de tricô e marcenaria na escola. E também de futebol, handebol e todos os esportes – mistos. Imagine que lá qualquer um deles ou delas pode ser o que quiser – o que quiser mesmo, sem qualquer distinção. Elas sonham em jogar futebol ou lutar MMA, eles sonham em ser bailarinos ou top models – e tá tudo bem. Imagine, então, que nesse universo, os dois, mulheres e homens, ganham exatamente O MESMO para fazerem isso. Um jogador de futebol tem o mesmo salário que uma jogadora, que pode ser diferente do salário da bailarina que, por sua vez, ganha exatamente o mesmo que o bailarino. Agora imagine que, nesse lugar, você abra o jornal para acompanhar as notícias esportivas e veja a mesma quantidade de matérias sobre esportes masculinos e femininos.

Parece até música do John Lennon, mas é real. Esse lugar existe, não é uma fantasia. É a Islândia, o país de menos de 400 mil habitantes que já virou “queridinho” da Copa do Mundo por causa do carisma da sua seleção e torcida.

Quando conversei com Carina Ávila, repórter do Passaporte Sportv que vive em Reykjavík, capital islandesa, desde março, estive prestes a comprar uma passagem para um intercâmbio por lá, tamanha era a “surrealidade” que ela me descrevia.

“Você nunca, NUNCA, ouviu nada dos homens quando anda na rua por aí? Nem um assovio? NADA?”, perguntei incrédula. Não era possível, deve ser porque ela não entende islandês. Mas Carina foi enfática: “Nunca. E quando eu conto para as mulheres islandesas que isso acontece no Brasil, elas fazem essa mesma reação que você fez. Me perguntam: como assim homens DESCONHECIDOS falam essas coisas para vocês na rua??” – pois é, menina, queria entender também.

Carina Ávila, a única mulher selecionada entre os seis jornalistas do Passaporte FC

Quando a gente vê os dados mostrando que a Islândia é o país com maior índice de igualdade de gênero do mundo, a gente acha que isso é só número. Mas a Carina conta o quanto ela está sentindo na prática essa realidade desde que chegou ao país no início de março.

“Eu cheguei aqui com os mesmos receios que tinha no Brasil. Como mulher, você aprende a pensar na roupa que vai, nos lugares por onde vai passar, e a gente anda na rua cheia de medo, principalmente quando tem homem por perto. Só que logo nos primeiros dias eu notei que não precisava ser assim. Eu não tenho medo de andar sozinha na rua à noite, saio de madrugada tranquila, passo por grupo de homens tranquilamente, nunca ouvi nada de nenhum homem na rua”, contou às dibradoras.

“É interessante aqui quando você pergunta para as meninas pequenas o que elas querem ser quando crescer. Elas falam coisas como piloto de Fórmula 1, astronauta, presidente. São criadas com a ideia de que podem ser o que elas quiserem. Os meninos também podem ser bailarinos, costureiros…”, explicou.

A Islândia foi o primeiro país do mundo a ter uma mulher democraticamente eleita como chefe de Estado – foi Vigdis Finnbogadottir, em 1980. Ela foi reeleita algumas vezes e ficou no poder até 1996, o que fez até com que um pequeno islandês que estava crescendo nessa época pensasse que “ser presidente era coisa de mulher”, conforme contou Carina.

Os jornais esportivos dividem igualmente a atenção entre homens e mulheres

Hoje a política na Islândia também reflete essa igualdade: mulheres representam 50% do Parlamento. E na economia, foi aprovada no ano passado uma lei que PROÍBE o pagamento de salários menores para mulheres pelo exercício da mesma função.

Acham pouco? Então vejam como funciona o universo esportivo por lá.

Esporte

Nem coisa de homem, nem coisa de mulher. Esporte na Islândia é apenas “coisa”, por assim dizer. É apenas um negócio muito legal que quem quiser pode praticar.

Apenas por esse vídeo irreverente (pra dizer o mínimo) abaixo, já dá para ver como o país trata o futebol, por exemplo. Nele, o presidente da Islândia, Guðni Th. Jóhannesson, “bate uma bolinha” com a primeira-dama Eliza Reid na sala e os dois convocam a população para torcer pela a Islândia na Copa do Mundo.

Aliás, futebol lá é algo muito popularizado, tanto entre mulheres quanto entre homens. Os clubes têm tanto equipes femininas, quanto masculinas – e pagam os mesmos salários e premiações para ambos. Na seleção, se a equipe masculina for campeã do mundo, os jogadores vão ganhar a bonificação X. Se a equipe feminina for campeã do mundo, elas vão ganhar o mesmo X.

“É um país muito igual. Para eles, é surreal a ideia de a mulher ganhar menos. Se estão fazendo as mesmas coisas, o justo é que todos ganhem o mesmo.”

A percepção de Carina sobre como seria esse universo esportivo totalmente igualitário começou quando ela ligou a televisão para ver o que estava passando nos canais esportivos. Poderia ter acabado de começar o handebol masculino, mas logo viria o feminino. Ou então era o basquete delas, para depois começar o deles. O futebol. A natação. O que fosse, não importava: se passavam o dos homens, passariam também o das mulheres.

Equipe islandesa chegou a vencer a campeã olímpica Alemanha nas eliminatórias para a Copa de 2019 (Foto: Getty)

No jornal de todos os dias, a mesma coisa. Homens e mulheres dividiam a página esportiva de maneira exatamente igual. “Muitas vezes, a chamada da capa já é de uma modalidade feminina. Não tem essa diferença aqui, o espaço dado é sempre igual”, reforça.

“Agora está rolando eliminatórias na europa pra Copa do Mundo (feminina) ano que vem. Todos os jogos da seleção feminina estão sendo transmitidos. Você vai nos pubs e eles estão lotados com a galera bebendo cerveja e torcendo pela seleção feminina. Aqui eles sabem o nome de todas, conhecem o time feminino tão bem quanto o masculino”, contou.

Mas não para por aí. Neste mês, os islandeses também puderam acompanhar pela internet os jogos da Copa América de futebol feminino, que está sendo disputada no Chile. Essa mesma que é classificatória para o Mundial e para a Olimpíada e que ninguém no Brasil está transmitindo.

“É uma empresa islandesa chamada oz. Eles transmitem campeonatos de futebol do mundo inteiro. O responsável pelo canal na internet falou comigo e disse que ficou surpreso porque foi tentar ter o direito de transmissão do torneio e aí ouviu dos organizadores: ‘pode pegar porque na América do Sul ninguém quer mesmo’. Ele não entendia como o Brasil não ficava empolgado com isso. ‘A seleção campeã vai para a Copa do Mundo e para a Olimpíada, como vocês não estão dando bola para isso?’, me dizia indignado”.

Como jornalista esportiva, Carina também tem sentido na pele a diferença de tratamento. “Aqui o fato de eu ser jornalista que cobre esporte me dá muita credibilidade para falar sobre o assunto. Perguntam o que eu acho sobre os times, sobre os jogadores. Eu aqui estou tendo conversas bem mais aprofundadas sobre futebol do que eu tinha no Brasil, simplesmente porque aqui eu consigo conversar sobre isso.”

Na Islândia, ela nunca mais teve que responder ‘o que é impedimento’ quando dizia que gostava de futebol. Não consigo nem imaginar que mundo é esse.

Um dia a foto principal do caderno esportivo para para os homens, no outro para as mulheres; mas o espaço é garantido igualmente para os dois

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