Uma terra que tem os piores indicadores sociais do país e onde as condições de vida são bem diferentes daquelas que temos como “padrão” de civilização. Mas há um lugar ali em que todos – sem exceção – conseguem ser felizes: o campo de futebol.
Aquele está longe de ser um campo oficial, sequer tem grama e os gols não balançam as redes – porque simplesmente não há redes para serem balançadas. Por vezes, as bolas acabam “isoladas”, literalmente, e perdidas para a floresta que há ao redor. Mas o interessante ali é notar que os pés que as chutam são os mais diversos – de menino, de menina, adulto ou adulta e até alguns idosos e idosas.
À beira do Rio Tapajós, são as crianças que jogam bola – não há distinção entre meninos e meninas. Eles estão juntos, se misturam, se divertem, e nos ensinam que futebol pode, sim, ser deles e delas, livre de qualquer preconceito.
“Ali eles faziam tudo junto. Todas as brincadeiras eram junto – mergulho, queimada, futebol. Meninos e meninas crescem junto e aprendem junto, sem diferença. Foi uma das coisas que me impressionou”, contou Felipe Oliveira, publicitário e co-fundador da Ginga FC, movimento que busca transformar a vida das pessoas por meio do esporte.
Ele organizou uma viagem para a comunidade amazônica Suruacá, às margens do Rio Tapajós, no Pará, para promover melhorias ali reformando justamente o local preferido da comunidade Suruacá, onde moram cerca de 480 pessoas: o campo de futebol.
“Eu fui para aquela região pela primeira vez em 2015 para fazer um trabalho em 30 dias, mas me programei pra ficar 60 e explorar bem a região. Aí eu passava por comunidades, ficava com os ribeirinhos, vivia a vida deles, ficava em média de dois a 3 dias em cada comunidade”, contou Felipe.
“Em todas elas, o lance do futebol era muito forte. Seja homem ou mulher, o futebol era muito presente. Tinha comunidade com cinco a sete famílias, ali não tinha iluminação, não tinha esgoto, mas tinha um campinho de futebol, era impressionante.”
Depois da primeira experiência transformadora, Felipe Oliveira quis de alguma forma contribuir com aquelas comunidades e, junto com seu sócio na Ginga FC, também chamado Felipe, decidiu promover as reformas no campo de futebol de Suruacá contando com uma rede de voluntários que se propuseram a ajudar no projeto.
Em junho deste ano, 32 pessoas viajaram até lá para promover as mudanças – eles confeccionaram redes de gol reciclando garrafas PET, levaram bolas, meiões e chuteiras, construíram junto com a comunidade uma cerca para impedir a bola de ir tão longe, e refizeram o traçado do campinho.
Segundo Felipe, o grande objetivo era poder gerar uma grande transformação social na comunidade por meio do futebol e poder deixar um legado esportivo para os moradores locais.
Diante de tudo o que viram ali, o legado ficou para eles também.
“O futebol ali era muito democrático, era igual para todos. Vi mulheres de 45, 50 anos que jogavam todo dia. Outras que viajavam 5h de barco para jogar contra uma comunidade vizinha. Foi surpreendente, nesse sentido.”
Todos juntos
Enquanto “na civilização”, meninos e meninas são separados na infância por padrões de brincadeiras criados desde os primórdios e reproduzidos de geração para geração, lá no Tapajós eles se uniam com a bola no pé.
“Lá é mais difícil eles terem acesso a uma boneca, por exemplo. É algo mais individualizado. E o futebol é mais democrático nesse sentido. Você precisa ter uma bola e todo mundo joga. Os meninos são super abertos, eles jogavam super unidos, foi o que mais me chamou atenção”, comentou Felipe.
Conforme vão crescendo, até há uma separação por gênero, mas o futebol segue presente tanto na vida de homens quanto de mulheres. Na Suruacá, existem dois clubes, o Santos e o Norte-Brasil – ambos com categorias femininas e masculinas para todas as idades.
“Em dia de semana, eles treinam na comundade, aí tem o treino de mulheres, e o treino de homens. Os jogos acontecem no fim de semana, e aí muitos exigem viagens longas pelo Rio. Nesse caso, costuma ir a família toda, sem qualquer resistência.
Isso não significa que a divisão de tarefas ali na comunidade é igualitária. Os resquícios tradicionais – até da cultura indígena – seguiam presentes. “Na maioria dos casos, o homem era o cara responsável por colocar a comida na mesa. Ou vai caçar ou pescar. A mulher é a dona de casa. Elas sao muito boas artesãs. Faziam trabalhos assim pra comercializar”, conta Felipe.
Mas o horário do futebol era sagrado para todos.
“As mulheres gostavam muito de jogar, era algo muito natural para elas, que vinha mesmo desde cedo. Em São Paulo, é difícil encontrar muitas mulheres de 50 anos, por exemplo, que joguem futebol. Lá eu conheci muitas. Elas jogavam no fim do dia, lá escurece tarde.”
Na região, existe um torneio grande chamado Copa Tapajós, que reúne muitas comunidades ribeirinhas que vivem nos entornos do Rio. O time feminino de Suruacá foi campeão em 2015.
As meninas ali muitas vezes não tinham chuteira para treinar, jogavam de pés descalços e viviam com bolhas por causa do chão quente. Agora, com a ação da Ginga FC, elas e eles compartilharão as chuteiras, os meiões e o talento pelo campo na beirada do rio.
“Nós levamos chuteiras, shorts, camisas de futebol, deixamos tudo na escola organizado por tamanho para não ter aquela cosa de ‘isso é meu, isso é seu’. Assim todos vão poder usufruir”, explicou Felipe.
“Ali no Tapajós, o futebol representa muitos sorrisos. Eu vi muitas crianças sorrindo com uma bola no pé. Meninos e meninas, mulheres e homens. É muito transformador”, concluiu.
Sobre o projeto: #FutebolNoTapajós é o projeto ‘piloto’ da Ginga.Fc e foi desenvolvido de maneira independente durante o período de julho/2015 à agosto/2017.A partir desta primeira expedição, foi desenvolvida uma coleção temática de camisetas ecológicas para “dar voz” aos registros e vivências adquiridos na viagem. A coleção recebeu o nome de #FutebolNoTapajós e os tecidos das camisetas foram desenvolvidas através da reciclagem de garrafas PET. A renda adquirida com a venda das camisetas foi o que possibilitou o investimento e realização de uma benfeitoria esportiva na comunidade de Suruacá, uma carismática e hospitaleira vila ribeirinha do Rio Tapajós onde moram 400 pessoas, todos eles amantes do futebol.
Assista ao documentário gravado por eles na comunidade clicando aqui.