No início da Copa do Mundo feminina, elas eram a minoria. Somente nove treinadoras em 24 seleções que participavam do Mundial na França. Mas conforme o torneio foi se afunilando e chegando na fase de mata-mata, o sucesso delas começou a sobressair. Das oito equipes que, a partir desta quinta-feira, disputarão as quartas-de-final, cinco delas são treinadas por mulheres.
A mais antiga no cargo é Jill Ellis, dos Estados Unidos, campeã mundial em 2015 que agora tenta o inédito bicampeonato para as americanas – elas têm 3 títulos na história, mas nunca conquistaram de forma consecutiva. Sua adversária, a França, também é comandada por uma mulher de pulso, Corinne Diacre, que foi a primeira mulher a treinar um time masculino no país e agora é a responsável por levar as francesas ao tão sonhado título dentro de casa. O confronto entre Itália e Holanda também terá duas mulheres se enfrentando, com Milena Bertolini de um lado pelas italianas e a campeã europeia Sarina Wiegman do outro.
Além delas, a Alemanha, atual campeã olímpica, também tem uma mulher no comando. Martina Voss-Tecklenburg, que recebeu a difícil missão de assumir uma equipe que vinha em crise e trocou de técnico duas vezes para levá-la ao topo no Mundial – por enquanto, pode-se dizer que ela está indo no caminho certo, já que venceu todos os seus quatro jogos até aqui sem tomar nenhum gol e fazendo 9.
Diante do sucesso dessas treinadoras neste Mundial, contamos aqui um pouco da história de cada uma delas.
PS: Não podemos deixar de fazer a ressalva: entre as poucas que conseguiram galgar suas vagas em um espaço tão restrito aos homens, todas são brancas. A inclusão de homens e mulheres negras nos cargos de comando do futebol mundial também deveria ser uma prioridade.
Jill Ellis
Britânica por nascimento, Jill Ellis não teve a oportunidade de jogar bola desde criança. Na Inglaterra, esse ainda era um esporte muito restrito aos meninos, então ela ficava muitas vezes assistindo aos garotos e ao pai, que era técnico de futebol na época, mas tudo isso sem poder “entrar em campo”.
Quando sua família se mudou para os Estados Unidos, Jill começou a jogar na escola e chegou a ganhar um campeonato sub-19 no time em que o pai era técnico. Sua carreira de treinadora começou nas universidades dos Estados Unidos e foi um pouco por acaso.
“Eu fui para a faculdade para jogar futebol e estudar. Fui trabalhar no mundo dos negócios por alguns anos em uma empresa de telecomunicações. Aí recebi uma ligação para ser assistente de um time na universidade. Eu fiz uma aposta acreditando que poderia dar certo. E deu”, afirmou Jill.
Isso aconteceu em 1994. Ficou até 1999 atuando no futebol universitário e aí teve a chance de trabalhar com as seleções de base dos Estados Unidos. A partir daí, foi sendo, de certa forma, preparada para um dia assumir o cargo principal na equipe americana. Foi assistente da técnica sueca Pia Sundhage (bicampeã olímpica com os EUA) até ser efetivada como treinadora da seleção adulta em 2014.
“Ela foi galgando passo a passo e esta onde está por méritos. Não caiu de paraquedas lá”, disse às dibradoras Marcia Tafarel, ex-jogadora da seleção brasileira que mora há mais de 10 anos nos Estados Unidos, onde atuou como treinadora e hoje é coordenadora de um clube de base.
O grande mérito de Jill é ter conseguido fazer uma renovação na seleção americana, mesclando os nomes já consagrados e experientes, como os de Carli Lloyd e Megan Rapinoe, com os de jovens promessas do país, como Rose Lavelle que ganhou titularidade nessa Copa. Se em 2017, algumas das atletas pediram a saída da treinadora por algumas divergências, hoje ela parece ter o grupo na mão, promovendo mudanças de posicionamento entre as jogadoras que dão ainda mais velocidade para o time americano.
“Os pontos fortes e a organização. Ela desenvolveu um plano tático e tem alternativas dependendo dos adversários. Tem um grupo forte e todas em condições físicas excepcionais. Ela não tem o suporte de todos os envolvidos com Futebol Feminino aqui (nos EUA) mas sem dúvidas ela tem o grupo na mão. Ela aliou o poder físico das jogadoras ao talento de outras e trouxe mais qualidade em todos os setores do campo”, pontuou Tafarel.
Corinne Diacre
A técnica francesa teve uma carreira sólida como jogadora – foi a terceira atleta que mais vestiu a camisa da seleção de seu país na história. Como treinadora, começou a carreira no clube onde jogou a vida toda, o Soyaux, e logo também atuou como assistente da seleção. Foi em busca de cursos e tirou a licença profissional para poder treinar times das primeiras divisões da França. Em 2014, foi contratada pelo Clermont Foot, da Ligue 2, para ser a primeira mulher a ser técnica de um time masculino na história. Logo na estreia, recebeu flores do seu primeiro adversário.
Teve excelentes resultados com a equipe, ficou lá até 2017 e em 2015 recebeu o prêmio de melhor treinadora da segunda divisão.
Conhecida por ser rígida e exigente dentro e fora de campo, Diacre foi a aposta de Federação Francesa em 2017, depois da eliminação na Eurocopa, para tentar finalmente conquistar um título internacional para a seleção.
“Você não quer estar no vestiário quando ela grita com você”, brincou a atacante Le Sommer. Na vitória da França sobre o poderoso Estados Unidos em uma amistoso recente, sua equipe tomou um gol no fim (o placar ficou 3 a 1), Diacre não perdoou suas jogadoras por terem vacilado na defesa nessa hora.
“Ela fez questão de reforçar que nós não deveríamos ter tomado aquele gol, porque em um jogo decisivo, isso pode ser fatal”, contou a lateral Amel Majri.
Técnica experiente e sem meias palavras, Diacre deu uma resposta direta quando foi perguntada sobre as diferenças de treinar homens ou mulheres: “No futebol, é exatamente a mesma coisa. Em todos os estudos e cursos que já fiz, nunca vi nenhum módulo de treino que diz: se for um time feminino, você faz isso, se for masculino, você faz aquilo. Obviamente, homens e mulheres têm características físicas diferentes, mas é só isso”.
Martina Voss-Tecklenburg
A técnica alemã assumiu o cargo depois das eliminatórias da Copa em meio a uma crise na seleção alemã, que vinha de resultados decepcionantes após a conquista do ouro olímpico em 2016. Ela acumula a experiência de ter sido treinadora da seleção suíça garantindo a classificação da equipe pela primeira vez em uma Copa do Mundo e também em uma Eurocopa. Com esse currículo, ganhou a responsabilidade de comandar as alemãs em busca de um título mundial 12 anos após sua última conquista.
Como jogadora, Martina tem seis títulos do Campeonato Alemão, e quatro títulos da Euro pela seleção. Com toda essa experiência dentro e fora de campo, ela agora tem liderado sua equipe em uma campanha excelente, com quatro vitórias e nenhum gol tomado ainda.
“Hoje, tem mais times que estão no topo, mas nós aindaestamos entre os melhores e temos um grande potencial”, afirmou a comandante antes da Copa.
“Nós queremos ser ativas o tempo todo, mesmo quando não estamos com a bola. Temos que assumir riscos, jogar alto no campo para pressionar nossas adversárias. Mas também precisamos encontrar o equilíbrio e controlar a ansiedade”, comentou, sobre seu estilo de jogo.
Sarina Wiegman
A holandesa esteve na primeira Copa do Mundo feminina experimental organizada pela Fifa em 1988. Em seu país, enfrentava bastante preconceito e dificuldades por ser uma mulher jogando bola, e se mudou para os Estados Unidos para jogar lá por um ano. Foi ali que descobriu um lugar que realmente apoiava o futebol feminino e, quando voltou, tinha o desejo de fazer essa ser também a realidade de seu país.
Formou-se em Educação Física, começou a trabalhar como técnica de equipes de meninas e, em 2007, ganhou a chance de treinar o ADO Den Haag, onde conquistou Campeonato Holandês e a Copa da Holanda. Aí recebeu o convite para ser assistente do técnico Roger Reijners na seleção holandesa em 2014.
Fez os cursos de licença da Uefa e buscou se preparar para um dia poder subir mais um nível na carreira. Teve oportunidades como interina entre a saída de um e outro treinador, mas foi no início de 2017 que ficou frente à frente com seu maior desafio.
“Faltavam 6 meses para a Euro e nós não tínhamos técnico na seleção. A Federação conversou com as atletas, com as pessoas que trabalhavam ali e comigo, e me perguntou: o que devemos fazer? Respondi: acho que está na hora de eu assumir esse cargo”, contou Sarina ao site The coach’s voice.
A técnica diz que se sentia preparada para o desafio e finalmente conseguiu levar sua equipe ao tão sonhado título internacional. Não poderia ter sido melhor, a conquista da Euro veio dentro de casa com uma legião de torcedores enchendo estádios e ruas para apoiá-las.
“Nós precisávamos de boas vitórias. Nós podemos dizer às atletas que elas são boas, mas elas precisam sentir isso, viver isso. Nossa chance de vencer a Euro era pequena, mas era uma chance. Nós fomos atrás dela”, contou.
Depois desse título, Sarina elevou o patamar de sua carreira. Foi eleita a melhor treinadora do ano pela Fifa em 2017 e chega a essa Copa credenciada em busca do título.
Milena Bertolini
Por ter sido a técnica que conseguiu levar a Itália de volta a uma Copa feminina após 20 anos, Milena Bertolini já conseguiu um grande feito para o futebol das mulheres no país. Mas ela está fazendo mais: faz parte de uma mudança cultural significativa que está em curso na Itália sobre a forma como as pessoas ali veem o futebol feminino.
“Estou no futebol há 40 anos. O futebol na Itália é a última fortaleza masculina ”, disse a treinadora.
Jogando bola na infância, Milena conta que era vista como “um menino” porque mantinha o cabelo curto e estava sempre jogando futebol. “Os meninos me olhavam como se eu fosse alienígena. Cabelos curtos, jogando bola, eles achavam que eu não era uma mulher”, afirmou ao The Guardian.
De zagueira-central, ela jogou pelo Bologna e pelo Modena, e se aposentou quando atuava pelo Verona. Ali ganhou sua primeira chance para fazer a transição entre a carreira de jogadora e a de treinadora. Foi assistente-técnica em 2002 e na temporada seguinte ganhou a chance de assumir o cargo de treinadora principal. Foi colecionando títulos das primeira divisão da Itália com diversos clubes que ela foi se credenciando para o cargo que ocupa hoje. Tirou a licença pro da UEFA e, em 2017, foi convidada para assumir a seleção. Garantiu a classificação para o Mundial com apenas uma derrota na campanha e segue comandando o time em uma trajetória impressionante na Copa, com duas vitórias e uma derrota na primeira fase e a eliminação da China nas oitavas, que garantiu seu lugar nas quartas.
“Essas percepções (sobre o futebol feminino) estão mudando”, disse Bertolini. Ela acredita que o futebol feminino, que sempre foi muito popular nos EUA e na Alemanha, está finalmente ganhando mais atenção em seu país. Não há dúvidas de que o sucesso da seleção tem um papel nisso, já que os italianos ficaram sem ter para quem torcer na Rússia quando o time masculino não conseguiu a classificação.