“É da gente, esse recorde é nosso, é de todas as mulheres que estão lutando por melhorias em todos os setores”. Foram essas as palavras que Marta disse após conquistar o feito de ser a maior artilheira da história das Copas.
Não me lembro qual foi o discurso de Klose ou Ronaldo quando conquistaram essa marca pessoal no passado, mas geralmente os atletas creditam seus objetivos a Deus, aos familiares ou a alguém que o ajudou a chegar lá. Mas, que eu me lembre, nunca dividiram com uma parcela da população que precisa de representatividade como Marta fez.
No dia 18 de junho de 2019, uma terça-feira, ela apareceu diferente em campo. De batom escuro nos lábios, já começou a chamar a atenção pelo visual bem diferente do que o habitual. O Stade du Hainaut, em Valenciennes, foi o palco onde, com um gol de pênalti convertido aos 28 minutos do segundo tempo contra a Itália, Marta se tornou absoluta.
Nos pés, a chuteira preta sem nenhum patrocínio reforça o abismo colossal que a sociedade – e especialmente o futebol – impõe às mulheres: as diferenças de oportunidades, de tratamento e de salários. E é sobre isso que ela se refere em suas declarações. “Divido (o recorde) com todas vocês que lutam, batalham e ainda têm que provar que são capazes de desempenhar qualquer tipo de atividade. É nosso esse recorde”.
Se tornar a Rainha do futebol não foi fácil para Marta, sua trajetória de vida mostra isso, a partir do momento em que ela saiu de Dois Riachos, aos 14 anos, e entrou em um ônibus rumo ao Rio de Janeiro em busca de um sonho.
Hoje, aos 33 anos, com seis prêmios de melhor jogadora do mundo e 17 gols marcados em Copas do Mundo, ninguém duvida de que o feito da alagoana é imenso. Será?
Por que os feitos de mulheres são contestados?
O discurso feito por Marta, reforçando que as mulheres precisam se provar capazes de desempenhar qualquer função é muito verdadeiro e presente. E logo depois que alcançou o recorde de artilheira das Copas, o desmerecimento ou a diminuição da sua conquista apareceram nas redes sociais, na imprensa, na discussão entre torcedores.
Nunca se contestou de Ronaldo Fenômeno ou de Miroslav Klose o nível dos adversários que sofreram gols dos atacantes. Dos 16 de Klose, por exemplo, três foram contra Arábia Saudita, um contra Irlanda, outro contra Camarões – nenhuma delas são seleções de tradição no futebol. Mas, com Marta, o feito parece ser digno de avaliações mais profundas.
Marta joga sua quinta Copa do Mundo e seus gols marcados foram em cima de seleções como Coréia do Sul (2), Noruega (3), Suécia, Nova Zelândia (2), China (2), Austrália (2), Estados Unidos (4) e Itália. – desses 8 adversários, quatro são do mais alto nível do futebol entre as mulheres. Mas, no fundo, o que isso importa?
A discussão aqui deve ir além dos adversários vazados por Marta. Se desejam estabelecer comparações entre os gêneros, deve-se levar em consideração as oportunidades que a brasileira teve durante toda sua trajetória para se tornar quem foi. Sua grande sorte foi ter nascido com um dom sobrenatural com a bola nos pés, porque se dependesse de apoio, de estrutura e oportunidades dentro de seu próprio país, ela jamais teria alcançado todos os seus feitos.
E mais: enquanto jogadores gozam de patrocínios vitalícios com marcas esportivas, Marta chega mais uma vez ao auge de uma conquista sem ter o apoio de nenhuma empresa esportiva. Isso é surreal!
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Embaixadora da ONU Mulheres há alguns anos, é o discurso empoderado de Marta que tem aparecido recentemente em suas falas e gestos. As comemorações pós-gols levam a mensagem de equidade no esporte em sua chuteira, com um símbolo nas cores rosa e azul, justamente para reforçar a mensagem de igualdade de gênero.
As comparações entre o futebol masculino e o feminino – mesmo infundadas e sem propósito – sempre vão existir. O que não vai existir jamais é uma mulher capaz de representar tão bem a luta feminina como Marta. Ela buscou seu objetivo, venceu e no final de tudo, dividiu sua conquista com aquelas que, assim como ela, ainda sonham com uma sociedade mais justa. Esse foi o maior gol de Marta e ninguém vai poder contestá-lo.