Uma análise da final do Campeonato Paulista entre São Paulo e Corinthians feita por uma torcedora são-paulina num ponto de ônibus durante o jornal “Bom Dia SP” impressionou o apresentador Rodrigo Bocardi. Rachel de Almeida teve alguns segundos no ar para poder falar sobre a partida e evidenciou uma coisa que já deveria ser óbvia, mas que infelizmente ainda “choca” as pessoas: mulheres também sabem falar de futebol.
“Saímos frustrados porque jogamos mais, atacamos, não nos defendemos e infelizmente queríamos 1 a 0 para fazer a felicidade de quem estava no estádio”, disse a torcedora. Ela comentou também sobre a participação do recurso de vídeo na partida. “O VAR é uma tecnologia válida, mas ela tem que se melhorada, mais rápida. Demanda uma parada muito grande, tirou o ritmo do São Paulo naquele ataque que estava. Tinha que continuar”.
Rodrigo Bocardi mostrou um certo espanto com o conhecimento da torcedora e chegou a oferecer uma vaga de comentarista para ela. “Se ela deixar um pouquinho esse negócio de time de coração de lado e ficar só comentando, pode passar lá no capital humano, como chama aqui o departamento, e vai ser contratada para o próximo jogo. Manda bem nos comentários. Se ela estiver procurando um (emprego)…”.
Dá para entender o choque dele quando olhamos o contexto da cobertura esportiva hoje em dia. Quantas mulheres conseguiram oportunidade para opinar sobre futebol em rede nacional? Se hoje já vemos algumas na reportagem, nos comentários ainda é muito raro ouvir vozes femininas analisando o jogo e dando pitaco no desempenho dos times.
As mulheres que nos leem aqui podem dizer o que acontece quando elas começam a falar de futebol em algum lugar onde homens estejam por perto. Sempre aparece um para “testar” seus conhecimentos: “Mas você sabe o que é impedimento?” ou “Fala aí a escalação do seu time?”. E quando elas se propõem a responder e tiram 10 no teste, aí ganham o certificado de qualidade que todo homem exige para que uma mulher possa falar de futebol: “Nossa, mas você entende mesmo, hein?”.
Se a pessoa entrevistada do “Bom Dia SP” nesta segunda-feira fosse um homem, dificilmente teria “impressionado” Bocardi e muito provavelmente não receberia uma “oferta de emprego”, como a que ele fez para Rachel. Porque o apresentador “já esperaria” de um homem um “conhecimento de causa” sobre futebol, mas quando uma mulher fala sobre estratégia de jogo, aí vem a reação de surpresa e o convite para virar comentarista.
“É interessante perceber que, para muitos homens, mulher falando de futebol ainda é uma aberração. Você começa a ver umas mensagens do tipo: ‘nossa, mas você fala muito bem de futebol! Você entende mesmo!’. Como se fosse um absurdo uma mulher entender, sabe? Como se a gente fosse uma aberração, de outro planeta”, disse às dibradoras a jornalista Ana Thais Matos logo que assumiu o posto de comentarista do Troca de Passes na Copa do Mundo do ano passado.
Não é tão incomum assim encontrar mulheres que saibam falar sobre futebol com a mesma propriedade dos homens. Regiane Ritter foi uma das pioneiras nessa área como repórter de campo numa época em que as entrevistas eram feitas nos vestiários enquanto os jogadores tomavam banho. Como comentaristas, tivemos Soninha Francine na ESPN, Milly Lacombe no SporTV e depois comentando a Champions League na Record, Renata Fan conquistando o seu próprio programa na Bandeirantes, Ana Thais Matos agora como comentarista do SporTV, Camila Carelli na Rádio Globo, Vanessa Riche na Fox Sports.
Tem Bárbara Coelho agora comandando o Esporte Espetacular na Globo, Karine Alves também na Fox, a Débora Gares, na ESPN, Gabriela Moreira na Globo e SporTV…são tantas, que nem podemos ter a pretensão de citar todas aqui, porque seria injusto com aquelas que fazem esse trabalho muito bem, mas ainda não têm a visibilidade e o reconhecimento de uma emissora de TV. Esse número só não é maior nas mídias tradicionais porque muitas mulheres competentes aguardam o convite que Bocardi fez para a torcedora na rua: uma oportunidade.
Não é o gênero que define o conhecimento sobre futebol. O que traz esse conteúdo para uma pessoa é, principalmente, o interesse que ela tem sobre aquele assunto. Hoje, é possível dizer que a maioria dos homens se interessa por futebol, enquanto as mulheres ainda são minoria nessa área – por uma outra questão que já falamos aqui, que é a oportunidade que eles têm de se envolver com o futebol desde criança, algo que elas, no geral, não vão ter, porque isso “é coisa de menino”.
Mas as que se interessam podem falar sobre o tema tão bem quanto qualquer homem que também se interesse. E, bem ou mal, hoje em dia todo mundo conhece pelo menos uma mulher que goste e entenda de futebol. Então esse “espanto” já não faz mais sentido. Seria como se espantar com um homem que cozinhe bem. Oras, não estamos mais no século passado para achar que cozinha é lugar de mulher e futebol é lugar de homem, não é mesmo?
O que Rachel e tantas outras mulheres que gostam de futebol e buscam espaço para trabalhar na área querem não é a perplexidade masculina com seu conhecimento – é apenas uma chance.