Fome de bola: Cristiane chutava até prato e decapitava bonecas para jogar

Foto: CBF

Hoje, Cristiane Rozeira é nome de artilheira, está entre os cinco maiores goleadores da história da seleção brasileira. Mas já foi nome frequente também do livro de “alunos problema” da escola onde estudava em Osasco, na Grande São Paulo. Não porque era uma criança travessa. Sua rebeldia era apenas querer fazer algo que ninguém esperaria de uma menina como ela: jogar bola.

E a garota fazia absolutamente de tudo para isso. Até mesmo arrancar as cabeças das bonecas que ganhava de presente para ter algo para chutar. “A gente chutava qualquer coisa. Eu ganhava boneca e não queria, queria ganhar bola, então eu arrancava a cabeça da boneca pra chutar. Acho que todas as bonecas que eu ganhei eu arranquei a cabeça, porque queria fazer as pessoas entenderem que eu não queria uma boneca, eu queria uma bola”, disse a atacante às dibradoras.

+Seleção feminina tem camisa inédita e exclusiva em homenagem a ‘guerreiras’

Certa vez, na escola, quando jogava com os meninos na quadra, o intervalo acabou e a bola foi recolhida. Mas quem disse que isso poderia ser um empecilho? Para os amantes do futebol, qualquer coisa redonda pode ser uma bola. O escolhido da vez foi o prato da merenda.

“Eu até aprontei na escola. As tias pegaram a bola da gente no intervalo. Aí os meninos arrumaram o prato da merenda para chutar na quadra. Aí dava aquelas bicudas, ele rodava na quadra. Eu estava com eles, claro. E dei um azar que esse dia as tias estavam rodando na quadra, todo mundo saiu correndo, eu corri para a sala, pingando suor, aí quando eu vi ela na porta..falei: a casa caiu. Fui para a diretoria”, contou.

“Nessa hora já pensei: já era, meu pai vai me matar. Aí levei a advertência da escola para a minha mãe e ela não contou para o meu pai pra eu não apanhar, ela que assinou”.

Cristiane precisou driblar muitos preconceitos para conseguir jogar bola (Foto: CBF)

A mãe de Cristiane, inclusive, foi quem deu o braço a torcer para levar a menina a uma escolinha de futebol. Vendo a filha chegar todos os dias chorando em casa da rua porque alguém a tirou do futebol com os meninos, o coração materno não aguentou. E, quando Cristiane tinha 12 anos, ela pode finalmente jogar bola em um lugar sem que a expulsassem em algum momento do dia.

“Nisso de eu chegar chorando todo dia, minha mãe me deixou entrar na escolinha. Só que meu pai não tinha condição de pagar. O vizinho me via jogando na porta da casa dele no campinho e ele falava para o meu pai: sua filha tem futuro, coloca ela na escolinha. Mas a gente não tinha dinheiro. Aí quando minha mãe liberou, o vizinho, que é meu padrinho no futebol, falou que pagaria pra mim. Ele pagava a escolinha, me deu chuteira e tal. Eu não tinha grana nem para o transporte, mas ia andando mesmo, coisa de 40, 50 minutos”, relatou Cristiane.

Caminho até a seleção

Foi assim que começou a vida de uma das maiores atacantes que o futebol feminino já viu. Como todas as meninas, ela precisou insistir muito para que a deixassem jogar, insistir muito para ter uma bola para chutar e uma chuteira para calçar. E tudo isso ouvindo muita gente em volta falando todos os tipos de absurdo. “Essa menina-macho, que fica jogando com os meninos”. “Onde já se viu menina jogando bola?”. “Cadê a mãe dessa menina que deixa ela na rua jogando com os meninos?”.

Só que nada disso atrapalhava. Porque quando estava com a bola nos pés, Cristiane esquecia tudo o que estivesse acontecendo ao redor. Era ela e a bola, nada mais importava. E foi assim que saiu da escolinha para o Juventus, tradicional time da Mooca em São Paulo, e de lá para a seleção brasileira aos 15 anos de idade. Com 16, já estava jogando ao lado das maiores jogadoras do país na seleção principal – e experimentando ali também as dificuldades do futebol feminino que a acompanhariam quase que a vida toda.

Cristiane sempre foi o terror das adversárias (Foto: Getty)

“Quando eu entrei na base, a gente ganhava R$25 de diária, aí eu pensava: estou rica, nunca ganhei dinheiro na vida. Eu achava o máximo. Mas quando fui para a adulta, passei a ver a reclamação das meninas mais velhas, o que faltava, e comecei a perguntar para quem jogava fora do país. E a realidade delas era bem diferente. Eu questionava: por que a gente não tem essas coisas?”, contou a atacante.

“Chuteira tinha que devolver, top tinha que devolver para usar na outra convocação. Poxa, isso é pessoal. Até a camisa a gente tinha que devolver, não podia levar uniforme pra casa. Na Granja, a gente usava a academia da base. Isso só mudou em 2004, quando o René Simões veio brigar por nós. Foi quando a gente entrou pela primeira vez na academia da seleção principal. O campo principal da Granja também era inacessível para nós”.

+Formiga, o gênio que o futebol se esquece de reconhecer vai para 7ª Copa

As mudanças vieram depois de muita luta das jogadoras, que reivindicaram seus direitos junto à CBF. René Simões, técnico da histórica prata olímpica em 2004, foi outro que brigou muito pela seleção feminina, para que elas tivessem a mesma estrutura oferecida à seleção principal masculina. Hoje, a realidade é diferente, mas não por uma “concessão” dos dirigentes, e sim porque atletas como Cristiane não se calaram e exigiram o respeito que aquelas mulheres mereciam no futebol.

Seleção de 2004 conseguiu conquistar prata histórica sob comando de René Simões (Foto: Getty Images)

Luta diária

Ao longo da carreira, Cristiane jogou na Alemanha, nos Estados Unidos, na França, na China, fez história também em clubes brasileiros como o Santos, vestiu a camisa do Corinthians e hoje aposta no novo projeto do São Paulo para participar do processo de massificação do futebol feminino no Brasil. Tem um currículo condecorado de títulos, entre eles duas Libertadores, dois ouros no Pan Americano, duas pratas olímpicas e um vice-campeonato mundial.

Mas ainda assim, o preconceito com as mulheres no futebol segue firme e forte. Cristiane conta que até hoje ouve insultos seja nas redes sociais ou até mesmo no campo. Mas ela faz disso um combustível para seguir jogando e mostrando que meninas podem, sim, fazer o que quiserem. “Você pode ouvir essas coisas e se abalar, desistir, ou você pode usar isso para ser mais forte e continuar. Foi o que eu fiz”, afirma.

Como uma desbravadora em um universo tão masculino, Cristiane nunca aceitou seu “lugar de mulher” no mundo e sempre brigou por direitos iguais para todo mundo. Uma luta que hoje tem nome: feminismo. Se ela aceita o rótulo?

Foto: CBF

Nunca parei pra pensar nisso, sobre feminismo. Mas eu não gosto das coisas injustas. Nunca parei para pensar que o que eu fazia era uma luta, uma luta diária que a gente tem o tempo inteiro. Eu tenho esse lado de buscar a justiça e vou seguir buscando”.

E foi por causa dessa luta que ela abraçou que as mulheres têm conseguido cada vez mais espaço e reconhecimento no esporte. Neste ano, tem Copa do Mundo de futebol feminino e os jogos serão transmitidos na Globo pela primeira vez. A partir de 7 de junho, é a chance de ver uma craque nata como Cristiane vestir a camisa da seleção em um Mundial pela última vez. Já dá para imaginar a falta que ela vai fazer quando sair.

OBS: No dia 19 de março, as dibradoras promovem o evento “As Conquistas Delas” no Museu do Futebol em São Paulo, que vai contar justamente a história de luta do futebol feminino no Brasil. Cristiane, René Simões e Roseli, atacante da primeira seleção brasileira formada em 1988, estarão conosco. O evento é gratuito e começa às 19h30. 

Compartilhe

Facebook
Twitter
Pinterest
LinkedIn