*Por Maria Victoria Poli e Renata Mendonça
Nas últimas semanas, o nome de Cristiano Ronaldo voltou a ganhar as manchetes não por conta de seus tradicionais lances geniais dentro de campo, mas por uma acusação grave de um crime de violência sexual. A modelo americana Kathryn Mayorga, de 34 anos, alega ter sido estuprada pelo craque em 2009, em uma visita dele a Las Vegas, num quarto de um hotel luxuoso onde estava hospedado.
O caso está sendo investigado e ainda sequer virou um inquérito policial nos Estados Unidos. Mas, como não poderia deixar de ser, Cristiano Ronaldo já se defendeu atacando – e lançando mão do velho clichê usado por todos os jogadores de futebol (e homens em geral) quando se veem numa situação como essa, acusados de um crime de estupro: “ela está querendo ganhar fama”, foi o que disse o português.
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“O que disseram são “fake news”, querem usar meu nome para ter fama. Isso é normal, é parte do meu trabalho. Sou um homem feliz, estou bem”, afirmou o jogador assim que as notícias vieram à tona.
Depois, reiterou: “Nego terminantemente as acusações de que sou alvo. Considero a violação (estupro) um crime abjeto, contrário a tudo aquilo que sou e em que acredito. Não vou alimentar o espetáculo midiático de quem quer se promover à minha custa”.
Segundo CR7, a modelo Kathryn Mayorga quer “se promover” dizendo que foi estuprada por ele. Ela quer “ganhar fama”. E aí chegamos ao momento em que precisamos refletir sobre isso, independente de quem esteja certo ou errado nessa história: será mesmo que alguém gostaria de ficar famosa por ter sido vítima de um estupro? Será mesmo que denunciar um crime tão grave (e, ao mesmo tempo, tão relativizado) como esse seria uma boa estratégia para se promover?
Cristiano Ronaldo não é o único a se defender dessa maneira. Joanna Maranhão, vítima de abuso sexual aos 9 anos, ouviu o mesmo do seu agressor, seu técnico à época. Ele disse que a nadadora estaria “inventando” o abuso para ganhar fama. Coisas que fazem a gente imaginar situações bizarras, do tipo: pessoas passando na rua rindo e apontando para essas vítimas dizendo “aquela ali é famosa, foi estuprada”.
Nego terminantemente as acusações de que sou alvo. Considero a violação um crime abjecto, contrário a tudo aquilo que sou e em que acredito. Não vou alimentar o espectáculo mediático montado por quem se quer promover à minha custa.
— Cristiano Ronaldo (@Cristiano) 3 de outubro de 2018
Antes de falar sobre inocência ou culpa, é preciso falar sobre a maneira de se tratar uma denúncia séria como essa. E dizer que a vítima está querendo “ganhar fama”, além de não fazer muito sentido, não ajuda a esclarecer o que aconteceu para seus milhões de fãs ao redor do mundo.
Os fatos
No último dia 2 de outubro foi divulgada a notícia de que a polícia de Las Vegas reabriu uma investigação criminal sobre Cristiano Ronaldo. O motivo da reabertura do caso: a ex-modelo norte-americana Kathryn Mayorga entrou com uma ação civil contra o astro, alegando que ele abusou sexualmente dela há dez anos.
Mas por que só agora ela resolveu se pronunciar? Bem, além de todos os motivos plausíveis como constrangimento, vergonha, o impacto que isso poderia causar e outros conflitos pessoais, sociais e jurídicos, ela foi incentivada pelo #metoo (“eu também”), movimento iniciado por celebridades de Hollywood para falar abertamente e denunciar os incontáveis casos de violência sexual no meio.
O suposto crime de estupro teria acontecido no dia 12 de junho 2009. No dia seguinte, 13 de junho, foi registrada uma queixa na delegacia. De acordo com a vítima, enquanto se trocava na suíte de Ronaldo para usar a jacuzzi, o jogador teria pedido a ela para fazer sexo oral nele. Ela se negou e, depois disso, ele a teria levado para o quarto e a estuprado, enquanto ela dizia “não”.
É claro que não se pode generalizar ou tomar como verdade algo que ainda não foi esclarecido, mas, também, há de se levar em consideração o comportamento – infelizmente – comum e muitas vezes normalizado descrito pela vítima.
No entanto, na época, a modelo não disse que o agressor tratava-se de Cristiano, atleta em ascensão, até então no topo de sua carreira, com acordo recém fechado com o gigante Real Madrid. Ela realizou exames médicos na ocasião que comprovaram lesões da ocorrência de um ato sexual. Há também uma testemunha no caso.
Alguns meses depois, no dia 12 de janeiro de 2010, foi assinado um acordo civil de confidencialidade entre Cristiano e Mayorga, no valor de US$ 375 mil (equivalentes, hoje, a R$1,4 milhão). O acordo proibia a modelo de falar sobre as acusações.
Há exatas duas semanas, no dia 27 de setembro, Mayorga entrou com a ação civil para invalidar o acordo, alegando que o trauma pelo ocorrido a deixou sem capacidade mental para assinar tal documento. Além disso, ela afirma que foi enganada pelos advogados do jogador e que ele não cumpriu com suas obrigações contratuais e, por isso, pleiteia um valor mínimo de 200 mil dólares (quatro acusações de danos no valor de 50 mil cada) – equivalentes a R$ 752,7 mil.
O que vem depois, já sabemos. Cristiano Ronaldo nega veementemente as acusações. Justifica as ações de Mayorga dizendo que ela quer tirar proveito da situação e, apesar de não ser réu ainda, assume postura discreta – não está tão ativo nas redes sociais e é visto somente nos compromissos da Juventus –, mas se movimenta nos bastidores para preparar uma defesa, caso seja instaurado um inquérito.
Ao seu lado, uma família amorosa e o apoio de milhões de fãs ao redor do planeta, que reconhecem um talento excepcional e um caráter, até então, incontestável.
Talvez o que mais chame a atenção neste momento delicado, de incertezas e expectativas, seja o posicionamento precipitado e unilateral das instituições envolvidas com o jogador.
A Juventus, na voz do técnico Massimiliano Allegri e da diretoria, e a seleção portuguesa, na voz do comandante Fernando Santos, declararam total apoio a CR7 – sem nem sequer falar sobre o crime de estupro em si, sobre a natureza abominável de um ato tão grave e o que ele significa.
O presidente de Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa, exaltou a importância das conquistas esportivas do astro e pediu que as pessoas esperem o fim das investigações para se posicionarem.
No que diz respeito a sua imagem, as coisas já são um pouco diferentes. Terceiro atleta mais bem pago do mundo, Cristiano é o garoto propaganda de diversas marcas de apelo global, como a Nike, com quem tem contrato vitalício, a EA Sports, de games, e a Clear, da Unilever.
As três já se pronunciaram, afirmando que as acusações são extremamente graves e, por isso, monitorarão de perto o desenrolar das investigações. A rescisão de contrato com qualquer uma dessas empresas já significaria uma perda gigante, tanto financeira quanto pessoal.
Enquanto isso, o advogado de Mayorga, Leslie Stovall, afirmou ter recebido uma ligação de outra mulher, alegando ser mais uma vítima de estupro de Cristiano e disposta a falar sobre isso.
Inocente ou não?
Ainda não dá para dizer que Cristiano Ronaldo é culpado pela acusação que a modelo americana faz sobre ele. Dá, sim, para entender por que ela demorou tanto tempo para falar – além do acordo de silêncio, é uma questão da palavra dela (uma mulher “qualquer”) contra a de um dos maiores ídolos do futebol mundial (e estamos vendo o que está acontecendo agora que ela ousou dizer algo: ninguém acredita, ninguém leva em consideração, todo mundo diz que ela está querendo “ganhar fama”).
O que não dá para entender é a gente continuar colocando o futebol acima do bem e do mal, sem qualquer preocupação de ao menos questionar nossos ídolos sobre as acusações que aparecem sobre eles. Se fosse simples e vantajoso assim acusar um jogador de estupro, se isso trouxesse uma fama lucrativa, os casos, então, deveriam se multiplicar a cada ano, não é mesmo? Não é bem isso que acontece.
Então que se levem a sério as acusações que surgem até que se encerrem as investigações. E que os jogadores tenham a chance de se explicar publicamente, que eles falem sobre isso e não passem a tarefa aos advogados. Que eles sejam questionados. Por enquanto, Cristiano Ronaldo precisou responder mais sobre uma acusação de sonegação de impostos do que sobre uma acusação de estupro.
Assumir, aceitar ou tornar público um caso como este não é fácil, vantajoso ou confortável. Não podemos deixar que o discurso do mero interesse, financeiro ou por status, seja sempre legitimado como a primeira e mais provável possibilidade. A caminhada até a conquista de um espaço seguro para a voz da mulher ainda é estreita – não deixemos que seja interditada por obstáculos assim.