Meninos usam azul, meninas usam rosa. Algum dia na vida alguém inventou essa máxima que foi repetida pelos séculos e séculos e chegou até nós como “verdade absoluta”.
A ideia está tão intrínseca na sociedade, que uma vez vi uma menina de 4 anos dizer que a chuteira azul que havia ganhado “parecia de menino”. Ela gostou do calçado e logo foi chutar a bola com ele, mas não deixou de “reparar” no que a cor lhe dizia mesmo sem dizer nada. Uma garota de 4 anos que mal sabe o que diferencia meninos de meninas, mas já sabe que o azul é deles, e o rosa é delas.
Mas nos últimos tempos, essa ideia que se propagou sem justificativa plausível para explicá-la – afinal, não há argumentos biológicos ou científicos que comprovem que azul é cor de menino e rosa é cor de menina – passou a ser questionada, ainda bem. E, aos poucos, alguns estereótipos têm sido quebrados.
Mas o futebol, esse parece mesmo um mundo à parte, onde as ideias mais ultrapassadas insistem em permanecer.
Então, a Adidas lançou uma chuteira, a Predator, em um novo modelo rosa. Linda, por sinal. E bastou alguns jogadores patrocinados por ela começarem a fazer propaganda do novo material de trabalho que apareceram os primeiros comentários polêmicos.
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Olha essa #Predator do Pack Spectral Mode. #fazoteu porque eu sou #criadocomadidas @adidasbrasil
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“Chuteira rosa não, Geromito”, escreveu um deles, um recado a Pedro Geromel, zagueiro do Grêmio; “Geromito, não vai me usar essa chuteira de Barbie”, disse outro.
Fernando Prass, goleiro do Palmeiras, foi chamado de “são-paulino”, em comentários com alto índice de homofobia. Aliás, esses comentários relacionando a cor rosa a homens gays não são raros no contexto futebolístico. Quando a própria Adidas lançou a camisa 3 do Manchester United, que também é rosa, vários homens postaram nas redes sociais da marca dizendo que aquele uniforme era “gay”. Claro, porque rosa é cor de menina e homem que usa rosa não é “macho de verdade”, então consequentemente é homossexual. Um raciocínio tão superficial e simplista, que não sei nem por onde começar.
Eis que Jucilei, volante são-paulino, também postou uma foto da chuteira. “Sem maldade, mano, essa cor é pra mulher”, escreveu um. “Não pai, essa cor não”, disse outro. Aí foi a vez do outro meio-campista do São Paulo, o jovem Liziero, ter de ler os comentários “E essa cor aí meu compadre?”. Depois, o veterano Douglas do Grêmio, também postou e levou críticas: “Vai ficar linda, princesa”, comentou um, e outro: “na base do Grêmio não entra essa chuteira”. E por aí vai.
Felizmente, houve gente também para defender o uso de qualquer cor de chuteira, já que não é isso que vai definir nem masculinidade, nem futebol.
A Adidas também se posicionou por meio de nota: “A adidas não tolera nenhuma forma de preconceito – seja de gênero, raça ou classe. Acreditamos no poder do esporte e esperamos que essa chuteira continue quebrando ainda mais barreiras e estereótipos no futebol.”
Mas diante de tudo isso, fica até difícil saber por onde começar a debater. A chuteira rosa é de mulher por quê? O que faz uma pessoa pensar que homens que usam chuteiras rosas são homossexuais? Qual é o embasamento que alguém pode usar para defender uma ideia tão ultrapassada? Qual seria o argumento a ser utilizado para dizer que rosa é cor de menina, azul é cor de menino?
Na prática – aliás, na teoria E na prática -, esse argumento simplesmente não existe. A “regra” do rosa e do azul foi criada sabe-se lá em que milênio e, desde então, foi reproduzida e aceita sem que ninguém se perguntasse qual seria a lógica dela.
Não precisa nem entrar no mérito sobre o eterno duelo das chuteiras pretas (raiz) x chuteiras coloridas (nutella), como dizem por aí. Porque essa é outra discussão e sabemos que se o novo par dos jogadores acima citados fosse amarelo, laranja, verde ou azul, essas críticas não existiriam. O problema é que ela é rosa.
Só que, na verdade, o problema é que estamos em 2018 reproduzindo um pensamento de 1900 e bolinha, com a licença da expressão. Mais, estamos nos preocupando com algo que não faz sentido algum. Um menino que gosta de usar rosa não é necessariamente gay. Uma menina que gosta de usar azul não é necessariamente lésbica. E, se forem, também não tem problema nenhum. Não são as cores que determinam uma orientação sexual – aliás, as cores não determinam absolutamente nada. Essa é apenas mais uma ideia sem sentido que nos ensinaram desde a infância e que precisamos urgentemente desconstruir.
Porque o perigo dela é a rapidez com que se reproduz. Quando ouvi daquela menina de 4 anos, vinda de uma casa com uma família moderna, que não faz distinção de gênero para as coisas que ela deve ou não gostar, que sua chuteira azul “parecia de menino”, me deu um desespero instantâneo. Porque se aos 4 anos ela já pensa que azul não é para ela, o que vai pensar aos 6? Que futebol não é para ela? Que se ela gosta de azul e/ou de futebol, está errada porque o mundo diz que essas são coisas somente para meninos?
A ideia do rosa para meninas e azul para meninos é tão inocente quanto perigosa. Porque ela é só o início de uma série de restrições com as quais meninas precisam conviver por não terem nascido meninos – e vice-versa. Deixemos as crianças usarem as roupas que quiserem e brincarem do que escolherem. Deixemos os jogadores apenas jogarem – o que importa, afinal, é o futebol, e não a cor da chuteira. Deixemos as ideias ultrapassadas no passado, como o próprio nome já diz. Já é 2018, já passou da hora de evoluirmos – no esporte e na vida.