*Por Mariana Pereira
De Araraquara para Florianópolis. Da beira do campo para o home office. A rotina de Tatiele Silveira, a primeira mulher campeã do Brasileirão Feminino, está diferente nesse início de 2021.
Desde que encerrou seu ciclo na Ferroviária, a treinadora mora em Santa Catarina junto com a sua namorada e dedica boa parte do seu tempo aos estudos. “Estou fazendo a licença PRO (da CBF) e agora tem muito trabalho online para o qual preciso me dedicar. Eu tenho alguns projetos paralelos da área acadêmica, palestras, cursos, até para eu me aperfeiçoar. Estou me dedicando a essa parte de organização desses outros projetos que às vezes a gente deixa mais de lado quando se está trabalhando, e agora estou conseguindo colocar mais em ação”, disse a treinadora em um bate-papo de pouco mais de 30 minutos sobre carreira, conquistas, pandemia e, claro, futebol feminino.
Tatiele deixou a Ferroviária após conquistar o Campeonato Brasileiro de 2019 e ser vice da Libertadores da América (2019) e do Campeonato Paulista (2020). Por lá, ela fez história e reforçou o compromisso do clube em dar cada vez mais espaço para as mulheres em cargos de liderança e comissão técnica.
“Eu acompanhei a Libertadores deste ano, e que legal que saiu uma mulher no comando e a Ferroviária colocou outra. Legal também que continua com aquele pensamento (de ter mais mulheres) que eu acho muito bacana. Eu já conhecia a Lindsay (treinadora), trabalhamos juntas nos Estados Unidos. Acompanhei os jogos, continuo mantendo contato com o pessoal de lá, comissão, atletas, mas agora é cada um trilhando seu caminho”, apontou a comandante.
A temporada 2020 foi atípica para todos os clubes. Com a pandemia da Covid-19, foi preciso uma adaptação de calendário e treinos, mas não só isso. O lado emocional precisou de mais atenção. “Essa volta foi bem nervosa, bem tensa, mas que legal que tínhamos um grupo mais maduro, bem profissional, que sabia de tudo que estava acontecendo, mas sabia de suas responsabilidades de estar ali também. Nas pautas de reunião da comissão técnica a gente não estava mais falando só de futebol, só de treino, da parte técnica, tática, física. Ficou mais presente essa pauta do cuidado, da maneira que íamos lidar, do retorno competitivo, de lidar com as ansiedades, umas tem mais medos, outras são mais tranquilas. E apesar de se ter um problema, as jogadoras são apaixonadas pelo que fazem e estavam tentando realmente separar as duas coisas”, explicou Tatiele.
Ainda sobre o antigo clube, a comandante, natural de Porto Alegre, acredita ter entregado um bom trabalho e finalizado um importante ciclo em sua carreira. “Sempre é importante a gente conseguir se motivar novamente, buscar um desafio novo. Para o propósito no qual eu cheguei dentro do clube, quando fui contratada, eu fiz mais do que uma renovação, eu fiz parte da transição do clube, de mais investimento em atletas, e o principal objetivo era colocar a Ferroviária novamente em um patamar competitivo, buscando títulos, primeiras posições. Tenho certeza de que esse propósito a gente cumpriu e deixou um legado de comando feminino”, disse a treinadora.
A identificação com a Ferroviária foi tamanha que Tatiele recebeu das mãos do prefeito da cidade, Edinho Silva, o título de Cidadã Araraquarense. Mas, agora é olhar para o futuro e, quem sabe, traçar novas rotas rumo ao exterior. “Eu acho que eu tenho que abrir todas as possibilidades. Eu já saí do Brasil uma vez para conhecer o futebol feminino dos Estados Unidos e foi muito bacana ver outro tipo de método, de trabalho. Eu estou construindo a minha carreira, sempre falo que eu estou iniciando. É uma trajetória que eu construí, eu não cheguei aqui do nada, eu me preparei para estar aqui, mas agora eu posso também vislumbrar saltos maiores, e fora do Brasil também é uma grande opção de crescimento da minha carreira”, afirmou Tatiele.
“Quando encerrei o ciclo com a Ferroviária eu optei por ir ao mercado, estar disponível. Conversei bastante com o meu empresário sobre isso, a gente tinha alguns pensamentos e ele entende que o futebol feminino é um pouco mais restrito, são poucas equipes, é bem diferente do masculino. Pensamos que tem o momento certo de retornar em um projeto que esteja dentro daquela linha de pensamento”, concluiu.
Estar longe dos gramados colocou a treinadora em outras perspectivas profissionais, como mencionamos no início. E se durante sua carreira foi difícil encontrar referências femininas, hoje é ela quem serve de inspiração. “Nesse momento que eu tenho dado cursos e palestras o retorno que eu tenho recebido é muito bacana. De estudantes, de treinadoras que assistem meu trabalho e dizem ‘Eu quero chegar aí’. Às vezes me mandam um recado ‘Pô, aquele jogo lá você fez aquilo, fez isso’. Isso é muito legal, de tirar dúvida, saber como a gente pensa, e eu tento compartilhar isso nesses momentos de palestras e cursos e encorajar mais. ‘É difícil, mas precisamos tentar pra daqui a pouco ter mais mulheres ocupando esse cargo de treinadora’, pontuou Tatiele.
“Eu queria muito ter nomes de mulheres que vêm na cabeça. Eu acompanho muito hoje as treinadoras a nível europeu. Gosto muito da Champions League Feminina, acompanho o Chelsea de Emma Hayes, mas querendo ou não o que mais chama a atenção são os treinadores masculinos. Gosto muito do Pep Guardiola, do Liverpool do Jurgen Klopp, eu tento assistir a esses jogos de alto nível e ver o que posso trazer para minha realidade. A própria Emily Lima é uma referência, foi uma inspiração para mim quando eu estava em Porto Alegre na escolinha e ela foi a primeira treinadora da Seleção Sub 15, Sub 17. Naquele momento eu falei ‘que legal, uma ex-atleta treinadora’ e isso aconteceu comigo”, completou.
Peça fundamental do nosso futebol feminino, Tatiele comemora a evolução da modalidade no país e acredita em um bom desempenho do Brasil na Olimpíada de Tóquio. “Acredito que podemos ver uma equipe muito competitiva. A experiência que a Pia (Sundhage) traz, a metodologia, a maneira como ela conduz o trabalho com certeza vai driblar mais essa adversidade da pandemia nesse processo de preparação e levar uma equipe muito competitiva. Eu estou bem otimista com grandes resultados na Olimpíada”, declarou a treinadora.
“O futebol feminino hoje não é como já foi em outras épocas, de que surgia e simplesmente ‘não vai ter mais’. Hoje já vejo uma construção mais sólida dentro dos clubes, da realidade da modalidade. Esse passo a mais das transmissões, cada vez mais conquistar patrocinadores e mostrar para o torcedor. Torcedor é apaixonado pelo clube, sempre falei isso, então se tiver o time dele jogando e ele tiver fácil acesso para acompanhar, ele vai acompanhar, vai torcer, e isso faz parte do ciclo. Vamos vender o futebol feminino de maneira positiva e trazer esse retorno para o clube”, pontuou.
Se veremos Tatiele Silveira no Brasil ou no exterior, isso ainda é mistério. Fato é que a treinadora já sente falta do cheio do gramado, e a gente sente falta de mais uma mulher para somar às quatro presentes no comando de times que estarão no Brasileirão Feminino 2021. A competição começa neste final de semana e contará com Lindsay Camila na Ferroviária, Patrícia Gusmão no Grêmio, Carine Bosetti no Napoli e Christiane Lessa no Santos.
“A gente sente falta desde o primeiro dia. O que mais faz falta é o campo, a competição. Mas é saber lidar com todas essas situações, do momento que você está lá, que não consegue nem conversar, não consegue dar entrevista porque é muito intensa a nossa rotina, e esse momento que é de mais tranquilidade e colocar as coisas em ordem”, declarou a técnica. “A falta é muito grande”, concluiu.