Muita gente não sabe, mas, no chamado “país do futebol”, as mulheres passaram quatro décadas excluídas oficialmente da maior paixão nacional. Durante os períodos autoritários da história brasileira (tanto na ditadura de Getúlio Vargas quanto na ditadura militar), jogar bola virou caso de polícia para elas, que passaram quatro décadas proibidas de praticar esse e outros esportes considerados “inadequados para o corpo feminino”.
O decreto lei número 3.199 de 14 de abril de 1941 dizia: “Às mulheres não se permitirá a prática de desportos incompatíveis com as condições de sua natureza, devendo, para este efeito, o Conselho Nacional de Desportos baixar as necessárias instruções às entidades desportivas do país”.
Na última semana, lembramos o marco de 80 anos da assinatura deste decreto para nunca esquecermos de onde viemos e para onde estamos indo.
Halterofilismo, beisebol, lutas de qualquer natureza e a prática do futebol foram proibidos para as mulheres. As justificativas eram as mais esdrúxulas possíveis e sem nenhum fundamento comprovado. Diziam que as práticas de contato não eram compatíveis ao corpo da mulher – visto que elas precisavam se preservar para a maternidade – e que elas também eram mais frágeis do que os homens.
“O futebol feminino é desaconselhável e, com o passar do tempo, perigoso e nocivo”, dizia o Diário de Notícias de 1941. “As mulheres têm ossos mais frágeis; menor massa muscular; bacia oblíqua; coração menor; respiração menos apropriada a esportes pesados; menor resistência nervosa e de adaptação orgânica”, foi a explicação que saiu na Folha de S. Paulo em 1961.
A proibição só deixou de existir após muita luta e resistência delas em 1979.
Consequências
Aira Bonfim, pesquisadora e mestranda da FGV (Fundação Getúlio Vargas), participou ativamente da inclusão da história das mulheres no Museu do Futebol em 2015 e reforça o quanto fez mal para a modalidade feminina viver por mais de 40 anos de maneira irregular.
“Proibir institucionalmente uma prática esportiva não só gerou atrasos e retrocessos no desenvolvimento da modalidade no âmbito das competições esportivas nacionais e internacionais e organização de bases e calendários, mas comprometeu culturalmente e simbolicamente o acesso de gerações de mulheres a esses esportes uma vez eram considerados impróprios e “masculinizantes”, disse a pesquisadora.
Mas a proibição não impediu que as mulheres resistissem e mantivessem a prática esportiva, só que de maneira escondida – e, por isso, essa parte não consta nos documentos históricos da época.
“Apesar da proibição, as mulheres continuaram fazendo. Só que não podiam ser registradas suas conquistas, elas não poderiam aparecer oficialmente nos registros das federações. Isso deu uma invisibilidade na história das mulheres no esporte. Elas estavam, mas não aparecem. Só que o silêncio não significa ausência”, afirma Silvana Goellner, pesquisadora de gênero e educação física na Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
“Mesmo proibido no Brasil e em outros países, o futebol de mulheres foi uma experiência de desobediência civil uma vez que mesmo na contramão dos incentivos e da legalidade, foi praticado ao longo de décadas na maioria do território nacional e, aos poucos, atletas engajaram-se de forma associativista e militante a outros movimentos de emancipação feminina, como foi o caso da jogadora do Radar, Rose do Rio no início da década de 80”, relembrou Aira.
As ditaduras e os decretos acabaram na teoria, mas ainda hoje, na prática, existem muitas barreiras para as atletas que ousam desafiar a lógica ainda tão repetida de que “esporte é coisa para homem”.
“Os espaços públicos são ocupados por meninos. Hoje há uma proibição simbólica, ela ainda existe. O que mudou de lá para cá foi a maior participação das mulheres – aumentou a resiliência delas. A despeito de todas essas precariedades, elas não desistiram do futebol”, concluiu Goellner.
“Se temos a oportunidade de torcer, narrar, jogar e minimamente conhecer o futebol de mulheres no Brasil e no mundo, foi graças ao esforço insistente de diferentes grupos de mulheres que durante a transição democrática expuseram publicamente suas posições ‘subversivas’ e escandalosas para os padrões da época em relação ao desejo de viverem mais intensamente o tal esporte nacional deles”, reforçou Aira.
Insistimos. Resistimos. Chegamos a 2021, 80 anos depois da lei que tentou nos parar, mais fortes do que nunca. Ainda tentam, de várias formas, nos impedir de jogar, de evoluir. Nada nos foi dado, tudo foi conquistado. Mas a gente nunca teve preguiça de lutar. Seguiremos dibrando!