Preconceito é a maior barreira que mulheres ainda enfrentam no futebol

*Por Júlia Belas, de São Paulo.

Todo 8 de março, Dia Internacional da Mulher, jornais e revistas publicam suas respectivas matérias sobre os desafios e as alegrias de ser mulher. A Muito, revista dominical do Jornal A Tarde (BA), publicou um texto sobre futebol feminino na Bahia: “Vocação e entusiasmo compensam condições desiguais para atletas baianas”. Admito que, quando li esse título, senti o impulso de esclarecer alguns pontos.

Eu sou formada em Jornalismo pela Universidade Federal da Bahia e mestre em Jornalismo Esportivo pela St. Mary’s University, da Inglaterra. Meus estudos no mestrado e o meu trabalho são focados em acompanhar o esporte feminino, principalmente o futebol. Depois de ver tantos anos de luta das mulheres no esporte, me incomodei ao ler que “vocação e entusiasmo compensam condições desiguais”.

As condições e oportunidades são desiguais. Força de vontade, talento nato e entusiasmo podem contornar esse problema, mas não compensar. A matéria foca nas jogadoras do Bahia e Vitória, principais clubes do estado, mas poderia falar sobre a realidade de tantas outras profissões. A ideia de ser guerreira para superar adversidades não elimina essas adversidades – sem elas, o cenário seria bem diferente.

(Foto: Felipe Oliveira / EC Bahia)

A Série A2 do Brasileirão volta na semana que vem e vai contar, mais uma vez, com o Bahia. O Tricolor assumiu o comando da equipe feminina após o fim da parceria com o Desportivo Lusaca. No orçamento para 2020, o Bahia tem R$ 700 mil dedicados ao departamento feminino – o futebol profissional, por sua vez, deve receber R$ 121 milhões.

Já o Vitória, mesmo sendo o único representante do Nordeste na Série A1, não deve fazer bonito. Com quatro jogos disputados, a equipe sofreu quatro derrotas e 18 gols. O presidente Paulo Carneiro, em sua campanha eleitoral, já dizia que as mulheres não poderiam usar a mesma estrutura do time masculino para treinar. Além disso, as jogadoras não têm salário, recebem apenas o uniforme, têm pouca experiência (a maioria é da base ou então nunca jogou num clube) e o time não consegue bater de frente com equipes tradicionais. No ano passado, a folha da equipe era de R$ 30 mil – a campanha no Brasileiro terminou com o Leão a uma posição do mata-mata, na nona posição.

A parte da matéria que mais me surpreendeu, no entanto, foi quando os repórteres (dois homens) falam sobre os ciclos menstruais das jogadoras como “uma barreira a mais” na manutenção dos times femininos. A menstruação chega a ser chamada de “complicador” na preparação física das equipes.

Vitória é o único time nordestino na primeira divisão do Brasileiro feminino; clube entrará com equipe sub-17 para a disputa em 2020 (Foto: Divulgação)

Nem todas as mulheres menstruam – existem mulheres trans, mulheres que escolhem interromper com o uso de contraceptivos, mulheres que não menstruam por motivos diversos. E nem todas as mulheres sentem todos os efeitos do ciclo menstrual (tem mulher que não tem cólica, nem dor de cabeça, nem sente grandes alterações nesse período). Se esse não é o caso, os preparadores podem não saber como lidar para evitar os “inconvenientes”, como as cólicas. Além disso, há mulheres também que têm efeitos positivos na performance justamente por causa dos hormônios à flor da pele no período menstrual.

Olha só: cólica dói. As costas também doem, a cabeça dói, não é fácil ou simples. Existem soluções naturais e medicamentos feitos para amenizar esses sintomas. Quando as mulheres conhecem o próprio corpo, percebem alterações e podem programar o regime de treinos para acomodar as diferentes etapas.

A St. Mary’s University, onde eu fiz o meu mestrado, tinha um programa enorme de ciências do esporte. Questões que eu nunca tinha pensado, como a escolha do melhor sutiã de treino, a influência do ciclo menstrual no desempenho das atletas e como ter consciência dessas coisas eram estudadas por cientistas.

O aplicativo FitrWoman, desenvolvido pela Dra. Georgie Bruinvels e pela desenvolvedora de produtos Grainne Conefrey, foi criado para acompanhar o desempenho, o regime de treinos e o ciclo das esportistas. Ele foi usado, inclusive, na campanha vitoriosa da seleção dos Estados Unidos na Copa do Mundo de 2019.

Nia Ali foi campeã dos 110m com barreiras e celebrou com seus dois filhos (Foto: Getty)

Se seios, TPM, menstruação e gravidez são vistos como barreiras, grande parte da população não é considerada em programas de incentivo ao esporte. Além disso, o ciclo menstrual é o que faz as mulheres gerarem filhos – sem isso, não haveria população no mundo. Não dá pra tratar isso como “inconveniente”, é apenas uma característica diferente da dos homens. Por causa desse tipo de visão simplista, colocando essas questões biológicas como se fossem barreiras intransponíveis, mulheres  acabam não sendo o público-alvo das campanhas, não tendo espaços para essas práticas e tendo vidas menos ativas. Antes mesmo do esporte profissional, é uma questão de saúde pública, e o papel do jornalista é informar o público sobre essas alternativas.

Sem diversidade de vozes dentro das redações, o corpo feminino vai ser tratado como uma barreira. Ser mulher, nesse caso, é considerado uma barreira. Se o seu corpo não é feito para o esporte, como ter um bom desempenho? Ao invés de questionar essas estruturas, a falta de diversidade colabora para que essas ideias sejam propagadas.

O corpo feminino e seus processos naturais não são barreiras, apenas questões que devem ser entendidas para melhorar o desempenho e a qualidade de vida. As mulheres foram proibidas por lei de praticar esportes durante décadas. Tratar essas questões como um “inconveniente” em pleno Dia Internacional da Mulher é falta de consciência e afeta muito mais gente do que se imagina.

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