Da linha para as traves, goleira virou orgulho da filha no futebol de praia

“Minha mãe é a número 1” – com esses dizeres e uma foto da mãe-goleira estampada na camiseta, Ana Carolina recebeu Natalie Wippel no aeroporto, depois da jogadora retornar do Qatar onde a 1ª seleção feminina de beach soccer foi disputar também o seu 1º campeonato, os Jogos Mundiais de Praia. A equipe brasileira voltou com a medalha de bronze no peito e com o orgulho de ter feito história com a modalidade.

“O ano de 2019 foi especial pra gente. Eu tinha um sonho de criança que era vestir a camisa do Brasil e ouvir o hino nacional. Aconteceu. Agora só falta um título com a seleção brasileira, é o objetivo maior de todo mundo”, revelou a goleira às dibradoras.

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O começo de Natalie no esporte foi jogando futevôlei e apoiada pelo pai. “Ele me incentivou à beça. Comecei a jogar muito pequenininha. Com sete anos já estava brincando com bola, não gostava de boneca.” De lá, foi para uma escolinha de futebol – onde na maioria das vezes jogava com meninos – e desde os 13 anos defende o Centro Esportivo de Praia Geração, que conta com o apoio do Governo do Estado e tem uma parceria com o Flamengo Beach Soccer (para as equipes femininas e categoria de base).

O curioso dessa história toda é que Natalie “fazia bicos” de goleira quando o time precisava, mas ela queria mesmo ser jogadora de linha. Até mesmo o conselho de Meg, ex-goleira da seleção feminina, ela ignorou durante uma breve passagem pelo Vasco da Gama, no início dos anos 2000. “Fiz o teste como goleira com o intuito de ser aprovada e depois jogar na linha. Mas não deu certo. A Meg me dizia ‘você é um talento, tem que ficar no gol, não tem que ir pra linha, não’. Mas eu não dava bola pra isso”, revelou.

A primeira seleção feminina de beach soccer foi montada em 2019 (Foto: Miriam Jeske/COB)

A jogadora ficou na base do Vasco até 2003 quando o clube carioca interrompeu com o futebol feminino. Chegou a disputar a Taça das Favelas, foi vice-artilheira, mas percebeu que gostava mais das areias do que do campo. E no meio disso tudo, deixou a bola de lado para casar e construir uma família. 

‘Larguei tudo, casei e fui ser mãe’

Natalie conheceu o marido, Rafael Rec, ainda na adolescência. “Ele praticava artes marciais, era instrutor e me chamou para treinar. Desde então estamos juntos e eu nunca parei de lutar”, contou. Hoje, ela é faixa preta de kickboxing e dá aulas particulares para mulheres que desejam manter a forma e aprender uma arte marcial. “Vi que era uma fonte de renda boa e que eu conseguia conciliar com outras coisas e meu trabalho é esse.”

Natalie também dá aulas de kickboxing (Foto: Reprodução/Instagram)

Em 2010, aos 24 anos ela engravidou. “Não foi planejado, foi uma surpresa! Claro que a gente tem um sonho de ter filhos e a Ana veio num momento especial. Ela é uma menina iluminada, super engraçada, super companheira e parceira. Ela veio num momento em que o Rafael estava trabalhando muito e ela me fez muita companhia. E foi bem legal”, relembrou.

Depois que a filha nasceu, Natalie deu uma pausa no trabalho porque queria se dedicar integralmente à maternidade. “Cuidava, levava e buscava no colégio. Na minha infância, meus pais trabalhavam pra caramba, ficávamos muito sozinhas (ela e as irmãs) e eu quis dar pra minha filha uma atenção legal. Eu nem reclamo disso (para a mãe), mas ela chora quando lembra. E eu falo pra minha mãe que tá tudo bem, eu entendi. Mas eu quis dar pra Ana algo que eu não tive, que era ter aquela presença de levar, buscar e acompanhar de perto.”

E assim, a Ana Carolina cresceu e só foi ver a mãe jogar futebol em 2017, depois de Natalie ter ficado 10 anos longe da bola. “Hoje ela curte e tira onda! Todo mundo me conhece na escola dela porque ela fala ‘a minha mãe é goleira da seleção brasileira!’ Ela leva minhas medalhas escondidas pra escola, já peguei várias vezes. A última que ganhei no Mundial (de clubes, na Turquia) ela levou pra aula dentro de uma caixa e disse que era pra mostrar pros amigos”, relembrou.

A família de Natalie: Rafael e Ana Carolina (Foto: Acervo pessoal)

Ana Carolina gosta de acompanhar os treinos e jogos de Natalie sempre que pode. Em Copacabana, quando a mãe estava com a seleção brasileira de beach soccer,, a garotinha apareceu por lá pra ver a mamãe em ação e abraçar as demais jogadoras. “Ela gosta de estar junto! Teve uma vez que fui jogar a Copa de Seleções Estaduais e ela levou o celular. E aí ela ficava o jogo todo: ‘mãe, olha aqui’, tirando foto. Eu dizia: ‘filha, a mamãe não pode olhar, tô jogando’. Ela é toda tiete!”

A relação de Ana Carolina com o esporte é incentivada pelos pais, mas de maneira lúdica, sem nenhuma pressão. “Ela pede pra eu ensinar ela a ser goleira, eu boto a luva, passo os fundamentos, mas é tudo brincando. Tem que ir no ritmo dela, porque quanto mais cedo você começa, mais desgaste mental você tem. Meu pai me botava a maior pressão e eu falava ‘pai, sou criança, tô brincando’. Ele é um super pai, mas ele cobrava. Já eu deixo ela mais a vontade pra fazer o que ela quer, como balé, judô. Ela já fez de tudo e quero que ela tenha essa liberdade”, afirmou.

Finalmente, o gol!

Com a vida mais estabilizada e com o marido vivendo uma fase mais calma no trabalho, Natalie recebeu um convite de um treinador do Projeto Geração para fazer parte de uma seletiva para o campeonato Brasileiro de Beach Soccer. Jogando na linha, a equipe venceu a seletiva e foi para o Espírito Santo disputar o torneio nacional.

“Fiz todos os jogos classificatórios na linha e no jogo em que precisávamos ganhar pra ir pra final, a goleira se machucou e a reserva não estava indo bem e eu fui pro gol. Depois veio a final e o elemento surpresa era eu no gol. Eu estava 10 anos sem jogar, as pessoas não sabiam mesmo quem eu era. A final foi 4×3 pra nós e detalhe: eu ainda peguei um pênalti da Lelê Villar, uma das melhores jogadoras do mundo e fomos campeãs. Foi ali que comecei a pensar numa transição de posição.”

Mas, antes de viver o auge de sua carreira debaixo das traves, ela precisou passar por grandes desafios: em julho de 2018, enfrentou uma tuberculose muito forte, que os médicos chegaram até dizer que ela nunca mais jogaria em alto rendimento e a perda de um bebê, com três meses de gestação.

“Quase perdi o pulmão. Foi um milagre o que aconteceu comigo, fiz o tratamento por seis meses  tomando medicação, mas no segundo mês eu já estava fazendo atividades físicas de leve. Não tenho nenhuma sequela”, declarou. Ver essa foto no Instagram  

Uma publicação compartilhada por Natalie Wippel (@nataliewippel) em 27 de Out, 2019 às 1:39 PDT

Em dezembro, ela voltou às areias defendendo o Projeto Geração. Depois de perder uma decisão jogando na linha, ela entendeu o recado: era a hora de ir para o gol. “Fui conversando com minhas amigas e elas apoiaram. Me disseram que eu teria uma vida esportiva muito maior e foi isso que eu fiz.”

Em 2019, Natalie brilhou como goleira da seleção e dos clubes que defendeu. Foi vice-campeã carioca e campeã mundial com a equipe italiana Pavia, na Turquia e foi eleita como melhor goleira em cinco dos seis torneios que disputou – superando até mesmo luxações nos dedos das mãos.

Para sacramentar de vez sua habilidade como goleira, Natalie foi eleita como a melhor na posição em um torneio sul-americano disputado no Paraguai. Com representantes de diversos países, ela era a única atleta beach soccer entre as mulheres e se surpreendeu quando soube que a disputa seria no campo. “Eu não tinha nem chuteira! O gol é maior, a bola é diferente, eu estava com o dedo quebrado e ainda assim fui a campeã. Cara, a goleira do Peru era titular da seleção de futebol de campo. E só eu do beach soccer lá”, relembrou.

Natalie, melhor goleira Sul-Americana em evento da Conmebol (Foto: Reprodução/Instagram)

E foram muitas as lesões nos dedos. Tudo começou com uma luxação que ela sofreu na final da Taça Rio e, por causa disso, acabou jogando na linha e até fez um gol na partida. Já na semana seguinte, ela viajou para o Paraguai, onde competiu mesmo lesionada e foi eleita como a melhor goleira da América do Sul.

Além disso, no Mundial de Clubes disputado na Turquia, foi campeã enfrentando o mesmo problema. “Também joguei ali com o dedo quebrado. Foram sete jogos assim porque estávamos sem goleira reserva. Fomos campeãs! Ali, tinha um jogador da Rússia que me perguntou: ‘como é que você conseguiu jogar sete partidas sem ser substituída e com o dedo quebrado?’ Eu ri e falei pra ele: ‘eu sou mulher, eu sou mãe, amor!’

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