Já faz quase um ano que Marta fez seu décimo sétimo gol em Copas do Mundo e se tornou a maior artilheira da história do torneio entre homens e mulheres. Ela começou o Mundial da França (o quinto de sua carreira) com 15 gols somados, fez mais dois ao longo da competição e, com isso, ultrapassou os 16 do alemão Miroslav Klose, que até então detinha o recorde.
Na imprensa do mundo inteiro, a notícia repercutiu. “Marta quebra recorde de gols de torneio feminino e masculino”, afirmou a BBC. “Marta quebra o recorde de Klose em Copas do Mundo”, disse o The Guardian. “Marta supera Klose como maior artilheira de todos os tempos da Copa do Mundo”, noticiou o USA Today. A própria Fifa escreveu em seu website no dia 18 de junho de 2019 que “Marta fez um gol histórico, ultrapassando Miroslav Klose para se tornar a maior artilheira de Copas do Mundo – femininas e masculinas”.
No entanto, praticamente um ano depois, a própria entidade mostrou que ainda tem dificuldade de reconhecer o feito da brasileira. “Feliz Aniversário de 42 anos para o maior artilheiro de todos os tempos da Copa do Mundo, Miroslav Klose”, escreveu a entidade no twitter oficial da Copa do Mundo. Não foram poucos os perfis que questionaram a afirmação postando o nome ou a foto de Marta.
A matemática deveria ser lógica – e óbvia. Aliás, ela é, o que infelizmente ainda não tem lógica é o preconceito que insiste em diminuir o feito de uma mulher quando ela ultrapassa o de um homem. Marta tem 17 gols em Copas do Mundo. Klose tem 16 gols em Copas do Mundo. Quem tem mais ?
A Fifa se esquivou de responder quem seria o maior artilheiro da história das Copas, conforme nosso questionamento à entidade. Em nota enviada ao blog, ela afirma que “Miroslav Klose é o maior goleador de todos os tempos da Copa do Mundo da FIFA com 16 gols e Marta é a maior goleadora de todos os tempos da Copa do Mundo Feminina da FIFA com 17 gols”.
Happy 42nd birthday to all-time record #WorldCup goalscorer Miroslav Klose @DFB_Team_EN pic.twitter.com/ogCoRtCBcP — FIFAWorldCup (@FIFAWorldCup) June 9, 2020
É interessante notar que, quando não era uma mulher que estava no topo desta lista, não havia distinção sobre os torneios femininos e masculinos. Dizia-se que Klose era o maior artilheiro da história das Copas com 16 gols, seguido por Ronaldo e Marta com 15. Bastou a brasileira ultrapassar os dois para esse ranking sempre tão comentado”perder a validade”. Muitos passaram a dizer que não fazia sentido colocar artilheiros da Copa masculina e artilheiras da Copa feminina na mesma lista.
Achar que essa contagem deve ser separada por gênero é um argumento. Klose é o maior artilheiro entre os homens. Marta é a maior artilheira entre as mulheres – mas é também a maior artilheira entre os homens, já que nenhum deles tem 17 gols ou mais.
O que se tenta fazer com esse debate, na maioria das vezes, não é garantir uma contagem separada do artilheiro das Copas masculinas e a artilheira das Copas femininas. Os argumentos costumam vir sempre no sentido de diminuir o feito dela “porque foi contra mulheres”. Como se isso automaticamente significasse que os gols foram “piores” ou “mais fáceis de marcar”.
Dizem que os adversários da Marta são incomparáveis aos de Klose. Engraçado que nunca ninguém ficou comparando os adversários contra quem ele marcou com os adversários contra os quais Ronaldo marcou para entender quem dos dois tinha mais mérito no feito. Afinal, a Copa do Mundo masculina também tem seleções fracas que viram saco de pancadas e algumas delas foram alvo do alemão, como Arábia Saudita, Irlanda, Camarões, Austrália, Gana…isso deveria servir para alguém “desmerecer” seu posto (sustentado por cinco anos) de maior artilheiro da história das Copas? Não.
Cada um dos 16 gols que Klose fez tem uma importância histórica, afinal quantos jogadores conseguem marcar um gol sequer em uma Copa do Mundo? Sendo assim, mesmo sem figurar na lista dos maiores jogadores da história do futebol mundial, Klose deixou seu nome marcado na artilharia do principal torneio de futebol do mundo.
Assim como os 17 gols que Marta fez nas cinco Copas que disputou deveriam ser valorizados como tal. Os 17 significam 16+1, ou seja, significam que ela lidera essa lista. E se os críticos ao menos se importassem em pesquisar contra quem e como foram marcados os gols da nossa camisa 10, provavelmente se impressionariam com a qualidade e habilidade da brasileira – esta, sim, considerada uma das maiores jogadoras da história do futebol mundial e, coincidentemente, também a maior artilheira do principal torneio de futebol do mundo.
“Futebol feminino”, muitos farão questão de “corrigir”. Por que, então, não falamos “futebol masculino” sempre que nos referimos a homens jogando? Mais do que isso, por que todos os recordes conquistados por mulheres sempre são estigmatizados como “femininos”, ainda que sejam maiores do que os conquistados por homens da mesma modalidade?
Quando falam em “maior tenista de todos os tempos”, normalmente citam os nomes de Roger Federer, mas não mencionam Serena Williams, apesar de ela ser a maior vencedora de Grand Slams (ela tem 23, ele tem 20). Ela seria “a maior vencedora do tênis feminino”, enquanto ele seria “o maior vencedor do tênis”. Quando a CBF fala em “maiores artilheiros da seleção brasileira de futebol”, ela não menciona que Marta lidera a lista, e só coloca homens no ranking. Mas a seleção brasileira de futebol, então, é apenas a seleção masculina? Quando ela fala em “atleta com mais jogos pela seleção brasileira de futebol”, ela fala em Cafu, e não menciona Formiga, que já superou o lateral nesse posto. Então jogos femininos teriam menos valor do que jogos masculinos na contagem? Gols marcados em competições femininas são menos importantes do que gols marcados em competições masculinas?
Essa ideia de que qualquer coisa feita por uma mulher vale menos é o que embasou a desigualdade de gênero imposta na sociedade desde que o mundo é mundo. É baseado nisso que mulheres ganham menos do que homens para desempenhar a mesma função no mercado de trabalho (segundo levantamento mais recente do IBGE, elas ganham 20,5% a menos do que eles no mesmo cargo). E é essa máxima que sempre marginalizou as mulheres no futebol e fez com que elas fossem até mesmo proibidas de praticar esse esporte por quatro décadas. Ver essa foto no Instagram
Uma publicação compartilhada por Seleção Feminina de Futebol (@selecaofemininadefutebol) em 9 de Jun, 2020 às 2:54 PDT
Dentro desse contexto, quando surge uma jogadora que vence por seis vezes o prêmio de melhor do mundo da Fifa, que assume a artilharia absoluta da história das Copas do Mundo e que soma mais de 100 gols com a camisa da seleção brasileira, ela deve ser exaltada, e não diminuída. É triste ver tantos homens no Brasil preferirem ressaltar o feito de um jogador alemão bom (longe de figurar na lista dos melhores do mundo) a reconhecerem o mérito de uma jogadora brasileira considerada por muitos a melhor de todos os tempos.
E, no caso da Fifa, que nos últimos tempos tem feito questão de mostrar seu engajamento no futebol feminino, seria no mínimo justo o reconhecimento de que, atualmente, quem tem mais gols marcados na história das Copas do Mundo é uma mulher que atende pelo nome de Marta Vieira da Silva.