Assis Brasil Dorneles Gonçalves foi o maior incentivador da filha Maurine. Foi dele que a jogadora ouviu, ainda pequenininha, que ela poderia ser aquilo que quisesse.
O pai acompanhou de perto os primeiros dribles da garota que, aos sete anos de idade, começou a jogar bola na rua, entre os meninos e em equipes de várzea do Rio Grande do Sul. “Meu pai foi um cara que sempre me deu apoio. Com sete anos já me levava para os jogos, dedicou a vida dele para a minha carreira quando percebeu que era aquilo mesmo que eu queria pra mim”, relembrou a atleta que hoje defende o Famalicão de Portugal às dibradoras.
Quis o destino que o Seu Brasil partisse no momento em que ela defendia o nosso Brasil, em 2011, durante os Jogos Pan-Americanos de Guadalajara. Dois dias após a morte do pai por conta de um câncer no esôfago, foi de Maurine o único gol da partida contra o México que levou a seleção brasileira para a final da competição.
“Nossa, só de poder dedicar o gol ao meu pai, foi bem marcante pra mim em toda minha carreira. Eu revejo o vídeo e ouço a narração desse momento e até hoje ele me toca”, recorda a jogadora.
Apoio incondicional
Depois da rua e do time de várzea, a ascensão de Maurine no futebol foi rápida. Aos 14 anos, foi para as categorias de base do Grêmio, chegando no profissional um ano depois. “Meu pai ia em todos os jogos, não perdia um. Estava sempre lá gritando. Às vezes eu ficava até com vergonha”, recorda aos risos.
Com 15 anos, Maurine chegou à seleção brasileira Sub-19 e a conquista foi motivo de muito orgulho para o pai. “Foi a realização de um sonho que eu tinha desde os sete anos de chegar à seleção porque eu via as meninas pela TV e falava que queria ser igual a elas. E quando soube que havia sido convocada para uma sub-19 na época, ele ficou muito feliz. E ele falava: ‘viu, filha? Com a gente fazendo tudo certo e trabalhando as coisas acontecem!’”
E a carreira de Maurine foi mesmo brilhante, com passagens por grandes clubes do Brasil, como o Santos, Centro Olímpico, Ferroviária e Flamengo. Foi com a equipe das Sereias da Vila que conquistou grande parte de seus títulos: bicampeã da Libertadores (2009 e 2010), bicampeã da Copa do Brasil (2008 e 2009), campeã Paulista (2018) e campeã Brasileira (2017).
Pela seleção, a jogadora foi medalhista de prata nos Jogos Olímpicos de Pequim (2008), campeã Sul-Americana (2010) e campeã Pan-Americana em 2015, no Canadá. Disputou duas Copas do Mundo (2011 e 2015) e duas Olimpíadas (2008 e 2012).
Longe de casa desde muito nova, Seu Brasil só conseguiu acompanhar de perto sua passagem pelo Grêmio. Não chegou a ver jogos de Maurine no estádio, mas estava sempre ligado na televisão para ver os jogos da filha craque de bola.
“Quando fui pra São Paulo, a gente ficou um pouco distante porque ele não conseguia acompanhar de perto. Ele via pela TV quando passava alguns jogos de maior relevância, tipo Mundial ou torneios grandes. Mas pelo telefone ele estava sempre me apoiando, me dizendo pra não desistir daquilo que eu queria”, dizendo.
E foi justamente uma televisão que o Seu Brasil pediu às enfermeiras quando foi internado, em 2011, em uma UTI. Ele queria poder assistir aos jogos do Brasil e ver a filha em campo, mas por ordens médicas, o pedido não foi atendido.
Gol do Brasil!
Maurine defendia o Santos quando foi convocada para os Jogos Pan-Americanos. Ela estava com a equipe brasileira no Rio de Janeiro, a poucos dias de viajar para Guadalajara, quando recebeu a notícia de que seu pai estava doente. Quando Brasil foi internado, o câncer já estava em um estágio avançado.
Na época, o supervisor da CBF, Paulo Dutra, liberou Maurine para ir ao Rio Grande do Sul e ver seu pai. Ele também deixou em aberto a decisão da jogadora entre ir viajar com a seleção ou não.
Na UTI, Maurine teve seu último contato com o pai. “Nossa, ele ficou tão feliz quando me viu, começou a chorar e aí eu não aguentei, não queria chorar ali, mas… Foi uma despedida, na verdade, né? Mas eu acreditava que ele podia ter uma vitória, a gente pensa que a pessoa vai partir.”
Com o coração dividido entre viajar com a seleção ou ficar ao lado de seu pai, Maurine recebeu o aval de Seu Brasil para fazer aquilo que ela mais amava. “Ele me disse: ‘filha, não te preocupa com o pai. Vai lá fazer o seu trabalho, vai em paz que eu estou bem’. E aí eu dei um abraço e um beijo nele e falei pra ele assistir aos jogos. Foi por isso que ele pediu uma tevê para assistir”, contou.
E assim, a seleção feminina foi avançando na competição. Venceu Argentina e Costa Rica e empatou com Canadá na fase de grupos. O Brasil enfrentaria as mexicanas, donas da casa, na semifinal, em uma terça-feira. No domingo, enquanto estava em uma van, indo ao estádio para assistir a partida do futebol masculino do Brasil, o telefone de Maurine tocou.
Sua mãe deu a notícia sobre a morte do pai e Maurine ficou muito abalada. Recebeu amparo da psicóloga da seleção e até mesmo do jogador Romário, que participava das transmissões da Record como comentarista.
A jogadora conta que, em nenhum momento, a mãe pediu para que ela voltasse para casa. Essa era uma decisão que só cabia à Maurine e ela decidiu seguir com a equipe. “Depois de me acalmar, fui conversar com as pessoas e com o Kleiton Lima (treinador da equipe na época) e ele me disse que a decisão era minha. E aí pensei que meu pai iria se orgulhar de mim se eu continuasse ali, porque ele pediu para eu ficar até o final, independente de qualquer coisa que acontecesse. E a minha decisão foi em cima disso”, contou.
E lá estava Maurine, dois dias depois de perder seu pai, pronta para entrar em campo. “O Kleiton me perguntou umas 20 vezes se eu estava bem para jogar. Eu falei pra ele ficar despreocupado que eu ia entrar lá e dar o meu melhor, como sempre fiz. E, de certa forma, ali no jogo, esquecer um pouco do que aconteceu.”
A partida foi duríssima, o México teve chances claras de sair na frente e ampliar o placar, mas o primeiro tempo acabou 0x0. Na etapa final, Formiga acertou o travessão, a árbitra anulou um gol legal da zagueira Bagé e a Bárbara precisou se esticar toda para não deixar a mexicana Samarzich balançar as redes.
Mas o milagre mesmo, talvez, tenha vindo do céu. Aos 35 do segundo tempo, Francielle lança a bola na área, Rosana não consegue alcançar de cabeça, mas Maurine surge por trás e, num chute cruzado, classifica o Brasil para a final. É instantâneo, depois do chute com o pé direito, ela cai de joelhos no chão e ergue os braços para o céu. O gol tem dono. É do Brasil!
“Naquela hora, eu queria agradecer pelo momento que eu estava passando, porque acredito que não só nos momentos bons, mas também na dificuldade a gente tem que agradecer”, declarou a atleta.
“Olha pro céu, só podia ser seu, Maurine”, assim disse o narrador Eder Luiz, com muita emoção, durante a transmissão do jogo. Em depoimento ao blog, o narrador que hoje comanda as transmissões na Rádio Transamérica, relembrou deste dia e classificou como um momento de absoluta superação da lateral brasileira.
“Foi algo emocionante e mexeu com todos nós que fazíamos parte da transmissão naquele momento. Na narração do jogo eu quis, de certa forma, homenageá-la. Foi uma vitória importante. Existem gols que ficam marcados na carreira da gente e eu diria que das narrações que fiz pro futebol feminino, eu fiquei emocionado com esse fato e fico pensando até hoje no esforço que ela teve, emocional e físico, para proporcionar aquele momento.”
Na comemoração, a jogadora extravasa, chora bastante e é abraçada por toda equipe que se emociona junto com ela. Ao fim do jogo, Maurine sai de campo aos prantos, dá um longo abraço no treinador e, em seguida, concede uma entrevista bastante emocionada e recebe uma surpresa.
“Colocaram minha mãe para eu ver no telão. Ela falou que estava feliz e orgulhosa por ter eu conseguido dar o meu melhor, mesmo em um momento tão difícil e ainda mais fazer um gol. Foi uma coisa muito boa, eu estava precisando.”
Na final, o Brasil enfrentou o Canadá e, após empate em 1×1, a partida foi decidida nos pênaltis. E ali, o Brasil acabou perdendo a medalha de ouro por 4×3. “Infelizmente não fomos campeãs, mas Deus foi muito bom comigo porque no momento em que a gente mais estava precisando no jogo, eu fui lá e fiz um gol.”
O título de Maurine veio, sem dúvidas, naquela semifinal. “Fiquei feliz com o segundo lugar por tudo que a gente passou e do jeito que eu joguei. Meu título foi ali, do jeito que foi. Tinha que ser assim.”
Quase 10 anos depois da partida do Seu Brasil, a recordação mais bonita que Maurine guarda de seu pai vem do início de sua trajetória no futebol. “Quando joguei no Grêmio e conquistamos o Campeonato Gaúcho, foi meu pai quem me entregou a medalha de campeã. Eu tinha uns 16 anos e nunca esqueço aquele dia.”
E a gente não esquece, Mau, do dia em que você fez o Brasil se emocionar!