Celeiro de craques, clube formador, o Santos Feminino vive uma fase de incertezas com a sua base. Atual campeão Paulista Sub-17 e semifinalista do Brasileiro Sub-18 e Sub-16, as Sereinhas da Vila sofreram uma debandada e perderam atletas importantes para a temporada 2021.
As mudanças na categoria começaram com o desligamento do então técnico, Felipe Freitas. Responsável pela base do clube por quase 14 meses, o treinador foi demitido no meio de abril sob a justificativa de que “o departamento passa por uma reestruturação”.
Porém, o que o Santos trata como “momento de transição”, pais e atletas enxergam como “descaso”, segundo apurou o Dibradoras. Além de Felipe e sua comissão, Thais Picarte, que foi goleira do clube e passou a coordenar a base em 2020, também deixou o cargo.
A nossa reportagem ouviu pais, atletas, membros da comissão técnica – todos com a condição do anonimato – e o próprio clube para entender como se deu todo o desmanche e o que esperar daqui para frente. Vale lembrar que para esta temporada o Santos tem os mesmos campeonatos que disputou o ano passado: Paulista e Brasileiro das categorias Sub-16 e Sub-18.
Tentamos também contato com o Santos e com Sandra Santos (atual técnica da base feminina e que também estava a frente do Projeto Meninas Em Campo), mas o clube nos respondeu que, no momento, não era possível fazer a entrevista. Além disso, o clube reafirmou que só se manifestaria por meio da nota que já havia divulgado sobre o tema (você pode lê-la ao final desta matéria).
O projeto “base”
Desde 2018, quando retomou a base, o Santos possui parceria com um projeto social, o Meninas em Campo, a fim de desenvolver a categoria do clube. Todas as atletas que não pertencem ao elenco profissional treinam na sede do “Em Campo”, que fica no bairro do Butantã, em São Paulo. Sandra Santos, que assumiu o comando das Sereinhas da Vila após a saída de Felipe Freitas, é coordenadora do projeto.
Porém, o clube sempre teve suas próprias jogadoras, que chegaram por meio de peneiras ou por pedido da comissão técnica. Amanda Gutierres e Luaninha são exemplos disso, além de Ketlen, que cresceu na equipe da Baixada Santista e hoje estampa o muro do CT Rei Pelé. Que compõe o elenco profissional e ascendeu do próprio Meninas em Campo, apenas a zagueira Sassá.
Diferente dos outros rivais que chegaram às fases decisivas do Brasileirão Feminino Sub-18 do ano passado (São Paulo, Internacional e Fluminense), o Santos não oferece nada às suas atletas de base – meninas de 14 a 17 anos. Não há ajuda de custo, não há contrato de formação, alojamentos, transportes e, segundo um dos pais de uma grande promessa do time que não pertence mais ao elenco, nem alimentação adequada, que era prometido, as meninas recebiam.
“Fui passar um tempo com a minha filha e pude perceber algumas coisas. Cadê a alimentação, ajuda de custo pelo menos com transporte para uma menina que mora longe? Eu vi as meninas comendo coxinha, comendo salgadinho para poder treinar porque não tinha nem alimentação. Questionei o Felipe (ex-técnico) sobre as marmitas prometidas. Uma marmita por dia? Como que uma atleta vive com um pedaço de frango por dia?”, relatou o familiar. “Comida é o básico, e nem isso estavam dando”, completou.
Mudanças e desconforto dos pais
A reformulação da categoria reflete o momento político atual do clube, que possui uma nova diretoria desde o fim do ano passado. No feminino, Amauri Nascimento assumiu a coordenação das Sereias da Vila, cargo deixado pelo ex-gerente executivo Alessandro Rodrigues.
A promessa de que o desenvolvimento da categoria estava nos planos dos novos dirigentes caiu por terra após a eliminação no Brasileiro Feminino Sub-18. “As atletas estavam treinando em casa, prontas para voltarem após a pausa do Covid (a cidade de Santos estava em lockdown). Segundo o Amauri, havia uma ideia de reestruturação através de contrato de formação e melhores condições, até que um dia marcaram uma reunião e demitiram a comissão técnica, sem falar com ninguém”, contou um ex-membro da comissão.
Segundo esta mesma pessoa, a parceria clube e projeto social extrapolou os limites iniciais e agora o Santos caminha para terceirizar todo o seu trabalho de base. “A gente fez um trabalho muito bacana e de muita qualidade, não havia razões para fazerem aquilo, o que me disseram é que foi uma exigência do projeto (a mudança na comissão técnica). O clube quer se livrar da base por entender ser um problema, essa nova gestão precisa tapar buracos e essa foi uma saída fácil”, disse a pessoa.
“Eles não estão nem aí para a qualidade do trabalho, se vai ser campeão ou não, se vai estar entre os quatro melhores ou não. Eles querem resolver o problema e que outro local toque o trabalho enquanto eles não conseguem fazer. Ficou bem claro pelas atitudes tomadas”, completou.
Sumiço e respostas não dadas
Tais “atitudes tomadas” foram o estopim para muitos pais e atletas, que com o término das competições oficiais ficaram no escuro, sem respostas e sem saber do futuro. “Eu já tinha ficado bravo no começo de 2020 porque subiram meia dúzia de meninas sem idade de transição, sem um trabalho sério e o restante ficou sem apoio nenhum. Aí perdeu o Brasileiro para o Fluminense, passou o tempo e descobrimos que o Felipe caiu. As meninas ficaram dois meses sem ter a quem recorrer, sem treinar, sem nada, e a gente pedindo pelo amor de Deus para o Amauri falar com a gente, ou a Sandra”, explicou um dos pais responsáveis.
“Acabou o Campeonato Brasileiro, fomos eliminadas e até então meu contato era o Felipe. Ele daquela forma sempre cordial dizia que estavam vendo, tentando. Minha filha estava com nome na lista para ir para o profissional, estava tudo certo para ela subir. Um belo dia o Felipe fez uma reunião com as meninas e falou que tinha sido mandado embora, e aí foi tudo por água abaixo, eu nunca mais tive contato com ninguém”, contou um outro familiar.
“Foi tudo muito confuso. Quando achávamos que estava tudo fechado, que íamos seguir em frente, a gente tinha meta em grupo, metas individuais, recebemos a notícia de que a comissão foi mandada embora. Ficamos em choque. Aquela comissão era muito boa, sempre buscou o melhor para nós, não tinha tempo ruim. Eles (diretoria) foram muito egoístas”, desabafou uma jogadora.
A busca incessante por respostas continuou. “Eu levei a minha filha embora e aguardei um contato da diretoria. Por mais de cinco vezes procurei o Amauri e nunca tive retorno, aí comecei a perceber que as coisas não eram como tinham me dito. Até hoje ninguém do clube falou comigo, zero resposta”, completou o familiar.
Condições de treinamento longe do ideal
Além da falta de transparência da diretoria, os pais também reclamam das condições que as filhas eram tratadas no local de treinamento, a sede do projeto social Meninas em Campo. “Elas não tinham nem campo para treinar. Não é que elas dividiam com o projeto, elas não tinham lugar. Os horários eram organizados em cima da hora, as meninas tinham que estar à disposição, a prioridade não era o grupo do Santos, era o projeto social”, relatou um dos parentes.
“Véspera de jogo contra o Fluminense, jogo importante e elas tiveram que dividir meio campo com as meninas do projeto. Elas não podiam usar o banheiro, usavam banheiro químico”, contou outro familiar.
Em paralelo, a comissão técnica tentava ajudar da maneira que dava. “Às vezes conseguíamos cestas básicas e doávamos para as meninas de família mais carente. Também tinha parceria com restaurantes para uma refeição”, pontuou um ex-membro.
A reportagem tentou ouvir algum representante do projeto, que no caso seria a própria Sandra Santos e, como mencionado no início do texto, o clube nos respondeu que não era possível fazer a entrevista.
O posicionamento do clube
Tentamos contato com o Santos FC para obter alguma outra resposta além da nota oficial que o clube divulgou após a saída de atletas como Kamile, Luana, Amanda Dias, Lívia, Ana Ju, Ana Lu, Pimenta e Miracatu. Porém, ninguém quis falar.
O comunicado oficial é o seguinte:
“As atletas deixaram o Santos FC pois aceitaram propostas de outras equipes. No momento, o Clube não consegue ofertar contratos de formação e ajuda de custo para todas as jogadoras da categoria. Todas que saíram receberam ofertas onde entenderem que era o melhor destino para a próxima temporada.
O foco da atual gestão do Santos FC é poder organizar a casa para, no futuro, poder oferecer tudo o que rege o contrato de formação e ter mais segurança com as meninas da base.”
Mágoas e vida que segue
O assunto é delicado e envolve sonhos e angústias. Sabemos da importância do Santos no futebol feminino e torcemos para que o clube não siga o caminho do Botafogo, por exemplo, que recentemente anunciou o fim da sua base. Não por coincidência, as atletas que se destacaram pelo time santista na temporada passada e foram descartadas para a de 2021 optaram por clubes que oferecem à base recursos como ajuda de custo, contrato de formação, assistência médica, entre outras coisas que permitem uma nova percepção de futuro.
Para os pais, a decepção é com o trato para com as suas filhas. “O que a gente queria era transparência”, disse uma das mães. “O que eles fizeram foi: pega seu sonho e enfia na mala. Minha filha ficou chorando por semanas, jogar no Santos era um projeto de vida dela”, relatou a outra.
Para as atletas, o sentimento é uma mistura de frustração com gratidão. “Eu cresci demais lá, conquistei minha primeira convocação por lá. Carrego uma tristeza por terem feito aquilo com profissionais muito importantes para mim e para outras meninas que faziam parte do elenco, mas tenho muita gratidão também”, apontou uma jogadora. “Eu tenho um carinho enorme por todos de lá”, disse outra.
E para quem viveu intensamente todo o processo de construção e desconstrução, a torcida é para que tudo volte a se encaixar. “A verdade é que é um tiro no pé, é muito mais barato você manter uma base com qualidade e subir atletas. Ficamos preocupados com a formação das meninas porque a gente luta pela modalidade. Eu torço muito para estarmos errados e que o projeto de base continue”, afirmou um dos profissionais.