É comum ouvirmos por aí que “futebol feminino é chato” – uma frase muitas vezes repetida por quem sequer parou para ver um jogo da modalidade nos últimos 5 ou 10 anos. Na verdade, o que já está chato é esse clichê que as pessoas não cansam de repetir sem fazerem uma mínima reflexão sobre o que leva às diferenças do futebol praticado por homens e mulheres hoje em dia.
Partimos aqui da eliminação da seleção feminina sub-20 mais uma vez na primeira fase da Copa do Mundo para destrinchar um pouco da realidade do futebol feminino no Brasil e trazer alguns pontos que ajudam a explicar essa “diferença de nível”.
Na seleção das mulheres, depois de batermos na trave em duas Olimpíadas (2004 e 2008) e um Mundial (2007), vimos uma queda abrupta em comparação com outros países – que, por sua vez, evoluíram muito. Na Copa de 2015, não passamos das oitavas; nos Jogos do Rio fomos até a semi. Na base, somamos três eliminações consecutivas na primeira fase da Copa do Mundo sub-20 – nas três edições, foram 10 jogos e apenas UMA vitória, contra Papua-Nova Guiné.
Mas os resultados não são coincidência. São reflexo de uma modalidade abandonada. E para quem insiste em comparativos entre o futebol masculino e o feminino (sempre numa tentativa de depreciar o delas), vale listar aqui alguns aspectos que fazem um tão diferente do outro.
Podemos começar pela proibição que gerou um atraso de pelo menos 40 anos no futebol feminino por aqui. De 1941 a 1979, mulheres eram proibidas de jogar bola por lei e isso impediu qualquer desenvolvimento desse esporte entre elas por muito tempo. Mas vamos ao que vem depois disso:
(Melhores momentos da eliminação do Brasil para Coreia do Norte na sub-20 mostram erros básicos da seleção no sistema defensivo)
1- Preconceito e início tardio das meninas
Pergunte para qualquer jogador de futebol quando foi a primeira vez que ele chutou uma bola. As respostas serão 99% iguais. Ou não se lembram quando foi ou vão dizer que aconteceu entre os 2 ou 3 anos de idade. Normalmente, quando começam a aprender a andar, os meninos já começam a chutar – muito incentivado pelos familiares ao redor.
Com as meninas, dificilmente a realidade será essa. Elas costumam ganhar bonecas de presente, não bolas. E só vão jogar futebol na escola, quando muito insistirem para os meninos deixarem. É essa a resposta que a maioria das jogadoras dão quando perguntadas sobre o início: começaram na rua, com os meninos, aos 7, 8, 10 anos de idade.
Há números oficiais que comprovam essa diferença. Segundo estudo do Ministério do Esporte em 2013, 41,6% dos meninos começa a praticar esportes entre os 6 e 10 anos – enquanto só 29% das meninas inicia a prática nessa idade.
Começando mais tarde, o desenvolvimento da técnica também demora mais. Isso, em regras gerais, justificaria que a habilidade e o entendimento do jogo que um garoto demonstra aos 7 ou 8 anos de idade (considerando que ele começou a jogar com 3 ou 4) seja equivalente ao que uma garota vai mostrar aos 10 ou 11 (considerando que ela começou com 7 ou 8).
Além do início tardio, muitas vezes as meninas precisam enfrentar preconceito até dentro de casa para poder jogar. Os pais não deixam, dizem que é coisa de menino e, na escola, ela precisa brigar para ocupar a mesma quadra que eles.
2- Base
Se vence todas essas barreiras e quer seguir no futebol, a segunda maior dificuldade da menina será encontrar uma escolinha que a acolha. Não há escolinhas só para meninas. Em São Paulo, maior cidade da América Latina, sabemos apenas de uma. No Rio, as que existem são apenas para adolescentes, não há iniciação para garotas de 6 ou 7 anos de idade. Ou seja, a menina que quiser ir em frente terá, de novo, que se provar entre os meninos para conseguir seu espaço em uma escolinha entre eles.
Quando passa por tudo isso com sucesso e chega aos 15 anos ainda com o sonho de ser jogadora, vem a barreira da base. Quase não existem clubes com categorias para jogadoras de 15, 16 ou 17 anos. O Santos, atual campeão brasileiro e time com maior estrutura no futebol feminino no Brasil, está criando sua categoria sub-17 agora, para se ter uma ideia.
Sendo assim, as jogadoras vão direto para o profissional quando ainda não estão preparadas para isso. Elas pulam uma etapa importante da formação como atleta. A goleira Dani Neuhaus, que hoje atua no Benfica, jogava no Santos em 2016 quando deu uma resposta que explicou perfeitamente essa diferença entre o futebol feminino e o masculino.
“Eu estava assistindo ao treino do sub-11 do Santos outro dia, e eles estavam treinando linha de impedimento. Sabe quando eu fui aprender linha de impedimento? Quando já tinha 18 anos e estava no profissional. Os meninos estão aprendendo isso no sub-11!”, afirmou ela.
Os conceitos táticos do futebol chegam muito tardiamente às jogadoras. Porque não há estrutura para que elas aprendam isso antes. Enquanto os meninos têm categoria sub-8, sub11, sub-15 e sub-17 na base dos clubes, as meninas sequer têm base. Sendo assim, as ideias de transição, compactação, linhas de defesa, tudo isso será aprendido já na marra, no profissional – às vezes até mesmo só na seleção.
E um dos problemas que a seleção feminina mais tem apresentado é justamente no sistema defensivo, na hora de diminuir os espaços dos adversários. Isso ficou evidente nos jogos do Torneio das Nações com o time principal, e também nas partidas que eliminaram o Brasil no Mundial sub-20.
3- Falta de visibilidade
O que torna todos esses problemas ainda mais graves é o fato de o futebol feminino não ter qualquer visibilidade na mídia. Porque isso faz com que não haja qualquer pressão por mudanças no cenário.
Vejamos o exemplo do masculino: a seleção tomou 7 a 1 da Alemanha em 2014, a CBF contratou Dunga para comandar a reconstrução e, com o acúmulo de vexames do treinador, ele não resistiu no cargo. Isso porque em todos os jornais, em todos os programas esportivos, só se falava do rendimento terrível da seleção sob o comando de Dunga. E porque todos os jogos em que o Brasil jogou mal foram transmitidos para todo o país e exaustivamente debatidos posteriormente na programação da TV.
Isso cria uma cobrança necessária para a entidade que decide os rumos do futebol, que precisou tomar uma atitude: tirou Dunga, colocou Tite.
No feminino, isso simplesmente não acontece. Porque ninguém está acompanhando a seleção de Vadão – até que chegue a Olimpíada e mais um vexame venha. Ou mesmo o desempenho da seleção de base, que teve Doriva Bueno como técnico e acumulou três eliminações na primeira fase nos três últimos Mundiais com um aproveitamento inferior a 20%.
Para mudar todo esse cenário, é preciso abraçar a modalidade de verdade, investir nela como um todo, como os outros países têm feito – não à toa estão passando o Brasil nas principais competições, como é o caso de Inglaterra, França, Austrália…
O trabalho da base precisa ser feito pelos clubes, mas a CBF também precisa olhar com atenção para isso, criando competições para essas categorias, por exemplo – a única que existe é o Paulista Sub-17, da FPF.
E a visibilidade na mídia é imprescindível para a evolução da modalidade como um todo, para atrair mais patrocinadores, e cobrar melhorias no desempenho das seleções.
Só assim o futebol feminino poderá deixar de ser “chato” , lento ou pouco “vistoso” como dizem – aliás, se pegarmos as seleções de países que levam a modalidade mais a sério, esse clichê repetido automaticamente é uma grande falácia. No Brasil, as atuações têm sido cada vez menos imponentes e mais cheias de erros porque refletem o trabalho que é feito com o futebol feminino por aqui – que fica bem abaixo do que é feito na América do Norte, na Europa e, hoje em dia, até mesmo na Oceania.
OBS: Para quem acha que o futebol feminino precisaria ter adaptações para ser melhor, falamos sobre isso aqui