*Por Renata Mendonça, de Moscou
Não é raro encontrar na Rússia meninos jogando bola nas ruas ou nos parques. Por onde você passa, vira e mexe vai encontrar um ou outro deles correndo atrás da bola. O que é raridade – e eu diria quase uma extinção – é encontrar meninas fazendo parte desse jogo.
A ideia de que futebol é coisa só para homem é disseminada no mundo inteiro, mas no país da Copa do Mundo, ela parece ser realidade na prática. Conversando com diversas russas em Moscou, não consegui encontrar uma que sequer soubesse de alguma mulher que jogasse futebol. Não há meninas jogando bola em nenhum lugar e, consequentemente, faltam mulheres para jogar também. O futebol feminino russo sofre com falta de jogadoras para completar a liga nacional, que tem apenas oito clubes no momento – no maior país do mundo, que tem quase 145 milhões de habitantes, há pouquíssimas mulheres interessadas em jogar bola.
“Temos apenas 200 jogadoras profissionais aqui. Quando fomos montar o time, tivemos que buscar jogadoras de 16, 17 anos para completar, porque não há opções no profissional”, disse às dibradoras
Alexander Bondarenko, gerente-geral do recém-lançado time feminino do Lokomotiv Moscou.
A equipe foi formada há apenas quatro meses e é uma das oito que disputam a liga nacional. A zagueira Anna Kozhnikova, experiente capitã do time e também capitã da seleção russa, conta que faltam jogadoras em todas as partes da Rússia e que não há incentivo para as meninas jogarem bola no país.
“Os times que existem estão mais na região central da Rússia. Mas nós somos o maior país do mundo e você não vê jogadoras sendo formadas, nem times femininos lá para o Norte ou lá para o Sul”, explicou às dibradoras num bate-papo cheio de histórias diante da Spasan Arena, o campo onde a equipe feminina do Lokomotiv faz seus jogos.
A ideia de que mulheres não podem (ou não devem) jogar futebol é tão forte na Rússia que em alguns lugares nem se sabe da existência do futebol feminino. Anna Kozhnikova, por exemplo, é de uma cidade bem pequena no interior e, mesmo com a projeção internacional que conseguiu na carreira, ela conta que até hoje quando volta para lá, as pessoas a questionam por que ela está jogando futebol “com os caras”.
“Eles não entendem que existe futebol feminino, que eu disputo competições com mulheres. Eles acham que eu jogo com os homens, para eles não existe jogo só com mulheres”, contou.
A história dela, aliás, se assemelha à de muitas jogadoras brasileiras, que não tinham onde jogar no início da carreira e acabavam “brincando” de futebol apenas com os meninos.
“Eu era a única menina da minha cidade inteira que jogava bola. Jogava com meu irmão na escola. Aí teve um ano que teve Campeonato e eu joguei com eles. Um técnico me viu e gostou e me chamou para jogar numa cidade maior da região. E foi aí que tudo começou, eu tinha 14 anos”, disse.
Quando falamos sobre o preconceito que as mulheres sofrem por jogar bola, mencionei para ela aquelas velhas frases que ouvimos por aqui: “volta pra cozinha, futebol não é coisa pra mulher, vai lavar louça, volta pro tanque…”, etc, etc. Ela não falava inglês, mas na hora me entendeu e riu. E me disse em russo que aqui na Rússia era exatamente igual – talvez a única vez que eu não tenha precisado do tradutor para entendê-la. Nos comunicamos pelo olhar e rimos pela coincidência dos argumentos bobos de quem tenta desde sempre nos afastar do futebol. Já aprendemos a driblá-los também.
Segundo Anna, a situação ainda é difícil, mas já houve tempos piores para o futebol feminino na Rússia. Épocas em que a liga tinha seis times apenas e era uma luta diária sobreviver assim. Hoje em dia, há dois times grandes do masculino investindo também no feminino – o CSKA e o Lokomotiv -, e a esperança dela é de que mais desses grandes nomes se interessem pela modalidade.
“É importante que os grandes nomes do futebol aqui invistam no futebol feminino. Eles podem trazer visibilidade e fazer com que outras meninas se interessem pelo esporte”, afirmou.
No Lokomotiv, a estrutura de treino e academia do masculino é a mesma utilizada pelo feminino. O clube afirma ter decidido agora investir na modalidade por acreditar que esse é um mercado em desenvolvimento e que o investimento pode trazer bons resultados agora.
“Vemos que é um mercado, que já começou a pegar bem em outros países da Europa, como Alemanha, Inglaterra. Não queríamos ficar para trás”, disse o gerente geral da equipe.
O investimento começou trazendo a técnica da seleção russa, Elena Fomina para o comando, e sua capitã na seleção, Anna, para também liderar a equipe. Quando pergunto sobre a escolha por uma técnicA, e não um técnicO, como é o mais comum mesmo em equipes femininas, infelizmente, ele me diz: “Achamos importante ter uma mulher no comando de um projeto feminino”.
Para Anna, trabalhar com mulheres como técnicas traz um grande diferencial pelo entendimento maior que elas têm de questões físicas específicas das mulheres.
“Principalmente se você pega uma técnica que foi jogadora. Ela já passou por tudo aquilo, sabe o que está falando, sabe como tratar as atletas para tirar o melhor delas. Por isso acho importante também incentivar outras jogadoras que se aposentam a apostarem na carreira de treinadoras. Precisamos disso também”, pontuou.
Na conversa, deu para perceber que as dificuldades enfrentadas pelo futebol feminino na Rússia não estão muito distantes das encontradas no Brasil. A maior diferença está na questão da falta de jogadoras – no Brasil, faltam clubes, falta estrutura, falta investimento, mas o que não faltam são meninas e mulheres em busca do sonho de jogar futebol, mesmo em meio a todas essas dificuldades.
E aí quando conto sobre a falta de visibilidade da modalidade em terras brasileiras, quando menciono o hepta da Copa América, que ninguém viu porque não tinha transmissão, e também a falta de transmissão dos jogos do Brasileiro, a reação dela foi de surpresa. “Sério? Eu não tinha essa impressão do Brasil.”, disse Anna.
O próprio gerente da equipe diz que sempre busca formas de ver o Brasileiro pela internet porque gosta de acompanhar as jogadoras para apostar em futuras contratações. “Não sabia que não transmitiam nada por lá. Aqui tem melhorado, agora eles mostram as finais da Liga e também todos os jogos da seleção feminina no canal principal da TV russa”, pontuou.
O preconceito também afasta o público do futebol feminino na Rússia. A média de torcedores por jogo do Lokomotiv é de cerca de 200 pessoas. Anna conta que ficou surpresa quando foi a Manaus jogar o Torneio Internacional de Futebol Feminino em 2016 pela paixão do público com a seleção.
“Muita gente estava indo aos jogos lá, a gente via o quanto eram apaixonados”.
Anna é uma grande admiradora do futebol brasileiro e já jogou com algumas craques da seleção, como a atacante Cristiane, a lateral Fabiana e a zagueira Aline Pellegrino, ex-capitã do Brasil, que jogou com ela no Rossiyanka entre 2012e 2013.
“Eram poucas equipes no campeonato, e apenas umas 4 brigavam de igual pra igual”, disse Aline.
“Sinto que o país, assim como o restante do mundo, está passando por um processo de desenvolvimento do futebol feminino. E a Rússia tem outros componentes dentro do contexto por toda questão política e histórica. Espero que a Copa do Mundo agora possa ajudar a chamar atenção também para o futebol das mulheres na Rússia”, concluiu Aline.
Quem sabe um torneio como a Copa possa inspirar mais meninas russas a quererem jogar. Quem sabe esse feito histórico da seleção russa nas quartas-de-final possa fazê-las sonhar em um dia estarem como os jogadores russos estão agora, sob os holofotes do mundo todo – só que na Copa do Mundo feminina.