Para muitos, mulher falando de futebol ainda é aberração, diz comentarista

Por muito tempo, foi comum ouvir e assistir aos homens comentando futebol no rádio ou na televisão. Transmissões de campeonatos, programas esportivos, mesas-redondas, debatiam as nuances do jogo apenas com vozes masculinas – e por muito, mas muito tempo muito, isso foi o normal, o padrão, algo com que nos acostumamos e aprendemos a não questionar.

A ideia de que “futebol é coisa para homem” sempre foi muito forte na sociedade e se reproduziu de maneira tão “eficiente”, que realmente manteve as mulheres longe desse esporte, tanto da prática, quanto da torcida. Algumas poucas ousavam e se arriscavam nesse território que parecia exclusivamente masculino e, por conta delas, podemos dizer que hoje estamos começando a mudar o curso dessa história.

Para quem está acompanhando a Copa do Mundo com afinco, já deve ter notado o marco que 2018 está representando: narrações E comentários femininos na Fox Sports, análises táticas feitas por uma mulher no SporTV. É bem possível (e a gente espera) que isso se torne natural muito em breve, mas hoje ainda é raridade – e por isso essas conquistas têm ainda mais relevância.

Bancada comandada por mulheres no “Comenta Quem Sabe” (Foto: Fox Sports/Divulgação)

“É interessante perceber que, para muitos homens, mulher falando de futebol ainda é uma aberração”, afirmou às dibradoras Ana Thais Matos, repórter da Rádio Globo/CBN e comentarista do programa Troca de Passes no SporTV durante esta Copa.

Ela conquistou um espaço muito raro para as mulheres neste Mundial. Ao lado de Gustavo Villani e Tiago Maranhão, Ana Thais faz análises táticas dos jogos diariamente no principal canal esportivo da TV fechada.

Ana Thaís Matos entre Gustavo Villani e Tiago Maranhão no Troca de Passes. (Foto: Divulgação/SporTV)

“Comecei a fazer o Seleção SporTV antes da Copa América de 2015, são mais de três anos ali (comentando na TV). E foi uma evolução. Quando o torcedor vê uma mulher ali, num ambiente que não é comum pra eles, primeiro ele acha que você está ali só pra dar uma informação. E aí quando você começa a falar dos jogos, da política do time, ambiente, bastidor, você vai mexendo com o emocional de quem está em casa. E cai naquilo que não é específico do esporte, mas faz parte do machismo, de ‘como assim uma mulher está falando de algo que eu sempre dominei?’, ‘quem é ela pra falar do bastidor do meu time?’. Então isso, no primeiro momento foi o que eu encarei e que me chamou mais a atenção”, contou a jornalista em nosso podcast pela Rádio Central3 (você pode ouvir aqui).

Com algumas participações no Bem Amigos e muitas no Seleção SporTV, Ana Thais Matos vem esbanjando competência com análises diferentes e bem embasadas diariamente. Mas entre os comentários que recebe nas redes sociais, ela percebe vários vindos de homens “surpresos” com seu conhecimento.

“Você começa a ver umas mensagens do tipo: ‘nossa, mas você fala muito bem de futebol! Você entende mesmo!’. Como se fosse um absurdo uma mulher entender, sabe? Como se a gente fosse uma aberração, de outro planeta”, disse Ana, reiterando que as mulheres acabam sendo muito mais cobradas também por qualquer equívoco mínimo.

Ana Thaís cobre o dia-a-dia do Corinthians pela Rádio Globo/CBN. (Foto: Divulgação)

“Acho um grande absurdo muitos homens falando dos jogos, mas eles nem assistiram ao jogo, nem ligaram para o técnico para saber porque escalou. Mas mesmo assim, o homem ainda tem a permissão pra falar com certo achismo. A gente ainda não pode falar com certo achismo”, explicou.

“E não sou eu que estou falando, é o mercado que impõe isso. A partir do momento que a gente escorrega, o nosso erro é cinco vezes maior do que o erro de um homem e isso é uma coisa que pesa muito, a gente carrega esse peso, infelizmente.”

Deixa Ela Trabalhar

Ana Thaís Matos é repórter da Rádio Globo e setorista do Corinthians, já trabalhou em veículos como Lance!, Bandsports, TV Bandeirantes e hoje faz parte do Movimento Deixa Ela Trabalhar, que reuniu as jornalistas esportivas em um protesto contra o assédio e o preconceito que sofrem no dia a dia.

A maior conquista do movimento, para ela, foi justamente ter ajudado as próprias mulheres a identificarem as situações de machismo com que convivem rotineiramente e que costumavam passar batido.

“Acho que é um movimento histórico principalmente por estar ajudando a conscientizar as próprias mulheres do problema. Uma repórter comentou comigo que nunca tinha passado por situações machistas, e eu disse: cara, parabéns, você é única, mas para pra pensar que você vai perceber alguma atitude machista. Aí depois de um tempo, ela me ligou dizendo que achava que tinha lembrado uma situação de machismo”, contou.

“Ela havia apurado uma notícia e gravado o boletim com as informações. Aí os editores derrubaram o boletim, porque nenhum dos repórteres homens da equipe tinha conseguido confirmar a informação. Ela disse pra eles que tinha confirmado e, mesmo assim, só publicaram quando um homem conseguiu checar se era isso mesmo”.

Ana Thaís participando do programa Bem Amigos do SporTV (Foto: Reprodução/SporTV)

Em entrevista ao nosso podcast, Ana Thaís também revelou que o machismo mais latente e que mais a incomoda, vem de dentro das redações esportivas. “Existe o machismo que vem do torcedor, que é uma coisa bizarra, e eu passo por isso em todos os campos de futebol, de quarta e domingo. Mas o que mais me incomodou sempre, foi o que eu vivi nas redações. E o movimento serviu para tocar em um ponto fundamental e fazerem os caras colocarem a mão na cabeça e perceber que o que estavam fazendo não era legal. E por mais que eles tenham comportamento machista, agora eles seguram mais o ímpeto, mas não são desconstruídos, não”.

Sobre o papel da mulher no jornalismo esportivo, Ana Thaís acredita que estamos vivendo uma mudança de direção e que fazemos parte de uma geração de transição. “É tudo muito recente, a gente retoma ciclos. Voltamos ao passado, pensamos no que foi uma Milly Lacombe, tudo que passou e aconteceu com relação à carreira dela e com outras repórteres que desistiram no meio do caminho. É um desafio importante, mas sempre falo da questão da auto-crítica. Não basta a gente brigar por espaço por ser mulher. Fazemos parte de uma geração de transição e os jovens que vão chegar irão trilhar um caminho melhor pela frente.”

Para ouvir na íntegra o podcast das dibradoras com Ana Thaís Matos, pela Rádio Central3, clique abaixo:

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