A história do quimono preto: o luto de uma judoca impedida de lutar

Soraia André, ex-judoca (Foto: Boletim Osotogari)

Para uma mulher negra e periférica entre as décadas de 70 e 80 no Brasil, praticar judô era uma grande prova de resistência e Soraia André quis enfrentar por amor ao esporte. Foi pioneira do judô no país, decacampeã nacional e a primeira mulher a conquistar uma medalha de ouro em Jogos Pan-Americanos (em Indianápolis, 1987).

Além disso, a ex-atleta esteve nos Jogos Olímpicos de Seul (1988), quando a modalidade surgiu na Olimpíada apenas como exibição e logo ali precisou lidar com seu primeiro trauma após ficar em 5º lugar na competição. Depois disso, o segundo trauma foi não ter conseguido conquistar uma medalha no ciclo seguinte, em Barcelona, 1992.

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Frustrada, tentou suicídio e, no retorno ao Brasil, fez duras críticas à Confederação de Judô pela falta de repasse de dinheiro aos atletas durante as competições. Como punição, foi banida de praticar o esporte. Mas pouca gente sabe como foi maneira que Soraia encontrou para protestar contra o seu banimento.

Rafael Campos Veloso, Doutor em Estudos Socioculturais e Comportamentais da Educação Física e Esporte pela USP, escolheu a história de Soraia André para defender sua tese de doutorado no ano passado. A pesquisa de Rafael recebeu o título de ‘Trajetos entre alvoradas e crepúsculos: o atleta e as muitas faces do mito do herói’. Em cima disso, ele desenvolveu um instrumento para expressar a potência das imagens das narrativas de vida dos atletas olímpicos brasileiros que denominou de ‘Contos Biográficos’.

“No período de escrita destes contos me deparei com a narrativa da Soraia André. As imagens foram tão impactantes que desejei muito versar sobre a potência do protagonismo dela em diversas valências. ‘Protagonismo’ é o ponto axial da trajetória desta mulher, negra (fusionada na imagem “japonegra” no tempo de atleta) e judoca, a mulher que inaugurou a trilha do judô feminino brasileiro nas Olimpíadas”, contou ao blog.

O quimono preto da mulher negra 

O ano é 1993, logo após Soraia viver meses de muita tristeza por conta dos maus resultados em Barcelona. Nessa época, a judoca tinha entre 28 e 29 anos e a Confederação Brasileira de Judô (CBJ) havia decretado que atletas com mais de 28 anos não poderiam mais representar a seleção brasileira.

“O processo pra mim foi muito dramático. O corte simbolizou que eu estava morrendo, estavam me matando. Aquilo era minha vida e, de repente, eu não podia mais fazer”, relembrou Soraia em entrevista às dibradoras.

Naquela época, só haviam quimonos na cor branca, nem o azul existia. “O branco do quimono não é por acaso. Ele simboliza a pureza, lutar contra si mesmo, buscar ser uma pessoa melhor a cada dia”, explicou Soraia. 

Soraia acendeu a pira olímpica na edição 2016 dos Jogos Escolares em Santo André (Foto: Prefeitura de Santo André)

E diante daquela situação em que não poderia participar de uma seletiva no Rio de Janeiro – visando os Jogos de Atlanta – Soraia decidiu vestir seu luto. “Quis protestar e só contei o que iria fazer para meus pais. Se falasse para outras pessoas, tinha certeza que alguém iria me fazer desistir dessa ideia.”

E foi assim que ela comprou tintas pretas, pegou seu quimono e foi para o tanque de sua casa. Com o auxílio da mãe – que perguntava se ela tinha certeza que queria fazer isso -, ela tingiu sua roupa mais importante de preto.

“Foi um processo, ia pensando ‘preciso tingir meu quimono de preto e vestir minha mortuária, já que eles estão me matando’. Foi difícil, eu chorava. Minha mãe me questionando, a gente virava aquele judogi (nome formal japonês à roupa), você imagina a transformação? Eu me senti morrendo mesmo.”

E assim, Soraia fez suas malas e foi para a rodoviária pegar um ônibus rumo à seletiva que ela não iria participar.

“Tomei um ippon fora do tatame” 

Chegando lá, Soraia se dirigiu ao vestiário onde os atletas estavam se preparando para a seletiva. Enquanto eles se vestiam, ela fazia o mesmo, e via espanto no rosto das pessoas que estavam ali, já que sabiam que judoca havia sido cortada.

“Quando eu vesti o judogi preto, as minhas amigas entre aspas e o restante das pessoas se afastaram de mim. Parecia que eu estava com uma doença contagiosa. Foi automático, eu coloquei o judogi preto e elas se afastaram, outras nem me cumprimentaram. E pensando bem, eu tinha uma doença mesmo. Eu estava protestando e protestar era uma doença. Estavam se afastando de mim com medo de serem taxados de alguma coisa, já que ninguém sabia o que eu iria fazer”, contou.

Depois de trajar seu quimono tingido de preto, Soraia sabia que não poderia ficar na área de competição com aquela roupa. “Não tinha nada a ver e sou muito temente às regras dos lugares, ainda mais no judô, que pra mim é uma doutrina, uma filosofia de vida.”

Soraia ensinou judô para crianças e adolescentes de Angola no ano passado (Foto: Reprodução/Facebook)

A ex-judoca levava algumas de suas medalhas nas mãos, sentou na arquibancada do ginásio e lá ficou em silêncio. Um repórter da Rede Globo estava no local e curioso, foi falar com ela. “Ele me perguntou: ‘Soraia André, o que você está fazendo aqui fora e com essa roupa?’. Dei uma entrevista, disse que eu estava vivendo meu luto porque eles estavam me matando. No dia seguinte, a matéria saiu no Jornal Nacional.”

“O quimono preto condensa o protagonismo político e o protagonismo de uma mulher atleta que assumiu o tempo da própria morte do tempo de atleta. Ele significou neste rito a própria mortalha e somente um espírito como o de Soraia possui potência de assumir o domínio da transcendência deste tempo”, analisou Rafael, que também faz parte do Grupo de Estudos Olímpicos (GEO) da USP.

Nenhum escândalo, nenhuma cobrança. Não era esse o intuito de Soraia. “Só fui para protestar. Ou melhor, para lutar, mas desta vez, fora do tatame. Da mesma forma como foram várias lutas na minha vida.”

Presença não permitida

A entrevista não caiu bem aos olhos dos dirigentes. Meses depois dessa seletiva, a CBJ convocou a seleção que iria treinar em São Paulo. E Soraia decidiu ir até lá. “Fui para treinar, afinal o treino era aberto. Treinei no primeiro dia e logo depois disso recebi um telegrama em casa que dizia algo assim: ‘Soraia André, onde a seleção brasileira de judô estiver, não está permitida a sua presença.'”

O protesto havia surtido efeito, mas Soraia precisou lidar com uma carga emocional muito grande. “Aí, eles me afastaram de vez e eu fui fazer outras coisas, fiquei longe do judô por um tempo, enfrentei depressão, fiquei sem propósito, mas estou aqui. Estou viva.”

Sem arrependimentos do que fez, a ex-atleta que é formada em Educação Física e Psicologia, analisa sua atitude e faz uma correlação com o psicodrama, sua especialidade dentro da profissão. “Pra mim, foi a melhor coisa que eu poderia ter feito, porque eu agi. Em psicodrama eles falam muito da ação, então com isso, você não fica só falando da emoção, você põe pra fora. Aquilo tava doendo? Estava. Aí eu agi, vivi meu luto. Acho que faria tudo de novo e talvez até mais elaborado, levaria até umas carpideiras pra chorar. Deixaria o cenário um pouco mais rico”, recorda.

Soraia participou do revezamento da tocha olímpica em 2016, em Chapecó (Foto: Divulgação)

“Na história do esporte, de forma geral, é possível constatar que o espaço institucional de sua estrutura (ampliados para os meio de comunicação hegemônicos) dificilmente cede espaço para a voz de seus próprios protagonistas, com o agravante quando estes protagonistas são mulheres”, afirmou Rafael.

“Imagens como o quimono preto de Soraia André que não passaram pelo registro das imagens em ritos – como os pódios -, devem retornar à superfície do mundo sensível para a permanência de sua mensagem no imaginário social”, completou.

Em 2020, Soraia completará 44 anos de tatame. Como uma mulher que viveu plenamente a época da ditadura ligada ao esporte e nenhuma relação com a Confederação, ela lamenta o fato de não ter nenhum reconhecimento por parte da CBJ. “Não sou chamada pra nada, nem pra acompanhar um treino. É como se todo meu conhecimento, bagagem e vivência não pudessem ser aproveitados. Não só tecnicamente, mas só de ir lá contar uma história para as meninas estava valendo”, afirmou.

A mulher que defendeu a seleção por 12 anos e foi a primeira a cravar seu nome na modalidade, hoje ministra aulas de judô em parceria com a Prefeitura de Santo André e faz atendimento como Psicóloga para atletas do voleibol, tênis de mesa e do próprio judô, na mesma cidade. “Eu não nasci para estar no meio do povo que aparece. Acho que nasci para estar no meio do povo que desaparece.”

*Colaborou Rafael Campos Veloso. Doutor em Estudos Socioculturais e Comportamentais da Educação Física e Esporte pela USP. Integrante do Grupo de Estudos Olímpicos da USP (GEO-USP). 

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