Cuiabá ‘abandona’ time feminino e expõe atletas às piores condições; entenda as denúncias

Há pouco mais de uma semana, o Brasil celebrava o fim dos Jogos Olímpicos de Paris e o retorno da seleção feminina ao pódio após 16 anos. No mesmo domingo em que a equipe de Arthur Elias entrava em campo em Paris para garantir a terceira prata olímpica, em Várzea Grande, no Mato Grosso, o time feminino do Cuiabá forçava o fim de uma partida no campeonato estadual por não ter atletas suficientes em condição de jogo.

O caso foi exposto em redes sociais por páginas de torcedores do clube e de apoio ao futebol feminino do país. Mas essa foi só a primeira parte de várias denúncias que viriam a seguir. Luiza Dias (nome fictício), de 20 anos, é uma das atletas do clube. Ela fez longo desabafo às Dibradoras, narrando episódios de descaso do Cuiabá à equipe feminina que vão desde a falta de estrutura nos treinos, insegurança nos alojamentos e ameaças. O clube foi procurado, mas preferiu não comentar.

A decisão de tirar o time de campo no domingo passado foi tomada dias antes da partida contra o Operário-MT, válida pela 3ª rodada do Mato-Grossense. Para esse jogo, a equipe, que tinha originalmente 14 atletas durante a competição, dispunha apenas de nove. 

“No jogo contra o Mixto (no dia 5 de agosto) uma atleta rompeu o ligamento cruzado anterior (LCA) do joelho e outra machucou o tornozelo. Além delas, outra jogadora tinha sido dispensada recentemente porque o pai dela reclamou sobre as condições do alojamento. Além das três que já não jogariam, a fisioterapia barrou outras duas. Portanto, sobraram nove meninas para o jogo”, explicou Luiza. 

A título de esclarecimento, o LCA é uma das lesões mais graves que atletas de futebol podem sofrer, com tempo de recuperação variando entre seis e nove meses. Há atletas que não conseguem voltar a jogar profissionalmente. De acordo com o Boletim Informativo Diário da CBF, o BID, o clube realmente liberou uma jogadora no período apontado por Luiza. Toda a movimentação de contratação e liberação de atletas e comissão técnica é discriminada no site.

O drama não parou aí: entre as nove restantes, duas estavam em tratamento ou com risco de lesão. “Uma das goleiras está em tratamento de pubalgia e lesão no adutor e uma zagueira já tem cirurgia do LCA e está com alto risco de nova lesão. Nossa decisão foi de não entrar em campo até para não piorar a situação das meninas, que estavam sentindo dor, com a exigência física da partida”, completou.

Súmula da partida confirma que o Cuiabá entrou em campo com nove atletas

Passados dois minutos do apito inicial, as jogadoras do Cuiabá deixaram o gramado em direção ao vestiário. Chegaram a trocar de roupa, mas, quando estavam prontas para voltar para o alojamento, foram avisadas pelo presidente do clube, Cristiano Dresch, que precisariam retornar para o jogo. 

“Falaram com nossa supervisora que, se a gente não voltasse, o Cuiabá seria multado em R$ 20 mil. Cristiano disse, ameaçando mesmo, que esse dinheiro sairia do bolso das atletas. A gente ficou com medo da situação, voltamos para o campo e quando o jogo foi retomado três atletas foram ao chão alegando lesão”, contou Luiza.

O jogo foi finalizado por falta de jogadoras, e o Operário foi declarado vencedor pelo placar de 1 a zero, construído no primeiro minuto da partida. Já o Cuiabá foi eliminado da competição. As atletas não têm contrato profissional com o clube – elas recebem ajuda de custo, que varia majoritariamente entre R$ 300 e R$ 500 segundo relato das próprias jogadoras.

Dramas, denúncias e inconsistências

Consolidado na Série A do Campeonato Brasileiro no futebol profissional masculino, o Cuiabá pode ser considerado o maior time do Mato Grosso e da região Centro-Oeste. Em abril deste ano, o clube divulgou investimento arrojado no próprio centro de treinamento, com reformulação que custará mais de R$ 50 milhões aos cofres do clube. 

“O CT é o maior passo da história do clube. É um passo para transformar o Cuiabá num outro patamar de clube”, disse, à época, o presidente do clube ao Globoesporte. Dias depois, o mesmo presidente garantiu que o Auriverde tinha dívida “próxima de zero” e que não tinha problemas em contratar ou manter atletas com alto salário. Atualmente, a folha do time profissional masculino gira em torno de R$ 5 milhões por mês.

Imagem do projeto do CT do Cuiabá. Foto: Ascom Dourado

A equipe feminina começou em 2021, quando o Cuiabá subiu para a Série A. Pelas regras impostas pela CBF desde 2018, clubes que estejam na elite do futebol masculino profissional precisam manter equipes femininas de base ou profissional, inscritas e atuantes em competições organizadas pela entidade ou por federações credenciadas. E foi aí que começou a história de Luiza com o Dourado.

“Eu sempre gostei de jogar futebol, meu pai sempre se envolveu com futebol. Com 12 anos eu comecei a jogar em escolinha, mas eu era do interior do estado. E com 16 anos eu vim para a capital jogar num time de futsal e acontece que, na mesma semana que eu vim, o Cuiabá estava montando seletiva para o time. Eu passei e, desde então, eu fiquei aqui”, lembrou.

Luiza participou do Campeonato Brasileiro Sub-18, Sub-20 e do estadual. Em todos eles o modo operacional era o mesmo: time montado às pressas, poucas semanas antes da estreia. E sempre com vínculo não-profissional, o que dificultava atrair jogadoras para o projeto. “Acaba o campeonato, dispensa as meninas. No ano que vem, se quiser jogar, chama de novo. E quando acaba o campeonato, dispensa todo mundo novamente”, relatou a atleta.

No estadual não foi diferente. O Cuiabá chamou de volta a base da equipe que tinha acabado de disputar o Brasileirão Sub-20 (a campanha foi de uma vitória, um empate e oito derrotas em dez partidas), mas o plantel não era suficiente para a competição. 

“Duas meninas foram dispensadas e outras três foram embora, tínhamos apenas dez no time. O clube disse que ia contratar, mas a data da estreia foi se aproximando e nada. Dois ou três dias antes de começar o estadual o treinador chamou a gente e perguntou se tínhamos jogadoras da cidade para indicar. As próprias atletas começaram a ir atrás, não o clube, mas as atletas. A gente achou mais algumas meninas para compor o elenco e aí ficamos com 14 jogadoras”.

Luiza contou que as atletas não tinham acesso a academia para condicionamento físico e que o acesso ao campo era apenas no dia dos jogos. Por isso, segundo ela, as lesões eram frequentes, além dos resultados ruins.

“Eles sempre deixaram claro para a gente desde o começo do ano que não iriam cobrar resultado, que tinham o time porque eram obrigados. Nós treinamos quase o ano inteiro em um campo sintético de society na escolinha do Cuiabá, íamos para gramado aberto só para jogar. Não íamos para academia e, por falta de treinos de força e carga, muitas atletas se lesionavam”.

Realidade comum

A relação do Cuiabá com o futebol feminino não é a única entre clubes na elite do futebol masculino. Em junho, o Atlético-MG foi rebaixado com três rodadas de antecedência do final da primeira fase do Brasileirão Feminino, que ainda está em andamento. As vingadoras somaram apenas um ponto nos primeiros 13 jogos e não têm possibilidades matemáticas de sair da zona de rebaixamento.

A equipe feminina faz parte do mesmo clube que, ano passado, inaugurou seu novo estádio, a Arena MRV. A casa do Galo tem preço de construção em R$ 746 milhões, além de outros R$ 335 milhões de contrapartidas, totalizando R$ 1,08 bilhão. Já a folha salarial da equipe masculina do Atlético-MG no Campeonato Brasileiro gira em torno de R$ 17,5 milhões mensais. 

Outros clubes de grande orçamento também tiveram histórico de negligência ou demora para abraçar a modalidade. Foi neste ano que o Flamengo, por exemplo, fez o maior investimento da história na equipe feminina, trazendo nomes como Glaucia, Cristiane, Fabi Simões e mantendo nomes como Duda Francelino e Giovanna Crivelari. Antes, a gestão da equipe era feita através de parceria do clube com a Marinha, que começou em 2015. Embora as atletas ainda treinem no CT da Marinha até o final de 2024, para 2025, há uma expectativa de que o time das mulheres possa ser integrado ao Ninho do Urubu.

Jogadoras do Bahia comemoram título no estádio Pituaçu, em Salvador. Foto: Letícia Martins / EC Bahia

Ainda assim, são poucos os clubes que colocam as mulheres para jogar no mesmo estádio que os homens. Recentemente, as equipes femininas do Vitória e do Paysandu jogaram as fases decisivas da Série A3 no Barradão e na Curuzu, respectivamente. Finalista da A2, o 3B da Amazônia mandou as partidas na Arena da Amazônia e, embora tenha a Ilha do Retiro como principal estádio, o Sport também manda jogos na Arena de Pernambuco, onde as leoas jogaram o mata-mata da Série A2. As equipes vencedores das duas competições, Vasco na A3 e Bahia na A2, não levantaram a taça em São Januário e na Fonte Nova, ainda que tenham mandado alguns jogos nos seus estádios oficiais.

Olhando para frente

E o que precisamos fazer para que situações como essas sejam cada vez menos frequentes no futebol feminino brasileiro? Primeiro é importante que o futebol feminino seja estimulado no Brasil desde as competições de base – e não apenas em campeonatos nacionais. Em levantamento de Eduardo Costa Ferreira, ex-treinador de futebol feminino atualmente pai de uma atleta de 11 anos, das dez federações melhores rankeadas pela CBF, apenas duas promovem torneios femininos de Sub-20, Sub-17 e Sub-15.

“Apenas duas, de São Paulo e Paraná, possuem todos os torneios da base feminino, quatro federações, do Ceará, Goiás, Minas Gerais e Santa Catarina promovem apenas uma categoria, e duas delas, da Bahia e de Pernambuco, não promovem torneio feminino de base”, apontou. Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul, por sua vez, promovem torneios em duas categorias.

Voltando ao domingo do dia 11/08, é necessário refletir. Se por um lado o dia marcou a retomada do orgulho da torcida brasileira com a seleção feminina, mostrou que o país ainda precisa evoluir muito para garantir estrutura mínima para que meninas e mulheres possam jogar futebol de forma competitiva no país.

E, para que o orgulho reconquistado com a seleção se mantenha ou se fortaleça para que deixemos boa impressão no Mundial que sediaremos em 2027, o nível técnico do futebol feminino brasileiro precisa acompanhar a excelência que o mundo inteiro exige. Para isso, a relação dos clubes com a modalidade precisa ser maior do que só a obrigação. É investir em mais um ativo do clube, que pode ser extremamente vencedor e (por que não?) financeiramente viável se feito com respeito, planejamento e boa vontade. 

Basta olhar para fora e ver que os principais clubes do futebol masculino no mundo estão se tornando, também, os principais clubes no futebol feminino, conseguindo também um retorno financeiro com elas.

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