Os Jogos Olímpicos de Paris foram marcados pela menor diferença de gênero entre participantes homens e mulheres. Apesar de não ter chegado na prometida paridade, pelos números oficiais divulgados pelo Comitê Organizador de Paris-2024, foram 5.655 homens e 5.455 mulheres, ou seja, 200 atletas homens a mais (em Tóquio-2020 foram 500). Diferença de 0,9% que pode ser atribuída ao hipismo, natação e, também, às seleções de futebol (16 masculinas contra 12 femininas). Dito isso, a maior presença feminina nos Jogos lançou luz a várias situações que ainda precisam ser discutidas, resolvidas ou mesmo absorvidas para que seja possível competir em alto rendimento. Listamos, a seguir, alguns exemplos.
O primeiro deles é uma vitória coletiva: a judoca francesa Clarisse Agbegnenou, medalhista de ouro por equipes e bronze individual, liderou uma lista de exigências para que atletas mães pudessem amamentar durante os Jogos Olímpicos. Quando retornou aos tatames em 2023, cinco meses após dar à luz Athéna, a atleta mobilizou condições para que pudesse manter a rotina de amamentação da menina enquanto competia. Ela foi responsável por uma mudança nas regras da Federação Internacional de Judô para garantir a filha por perto durante o aquecimento. E buscou essas mesmas condições para a Olimpíada.
Em resposta, o Comitê Olímpico Internacional (COI) em conjunto com o Comitê Organizador disponibilizou um espaço de 12 m² fica na Vila Olímpica e Paralímpica e é direcionado a bebês que estão em fase de amamentação ou ainda fazem uso de fraldas. A sala também será mantida durante os Jogos Paralímpicos, ou seja, atletas com deficiência também serão beneficiadas durante os Jogos Paralímpicos, que começam no dia 28 de agosto. Os parceiros também podem ficar para cuidar dos filhos enquanto as atletas participam das competições.
Atletas e hijab
Uma das imagens mais emblemáticas de Paris-2024 foi justamente no final da Olimpíada, para fechar os Jogos com uma reflexão. Sifan Hassan, atleta representando os Países Baixos, levou o ouro na maratona entre mulheres. Além de chegar em primeiro e bater o recorde olímpico com 2h22min55s, ela igualou um feito obtido apenas pelo atleta tcheco Emil Zatopek há 72 anos, nos Jogos de Helsinque.
Hassan, que nasceu na Etiópia mas chegou na Holanda como refugiada, foi bronze nos 5.000 m e 10.000 m e conquistou o ouro na maratona, sendo a única do atletismo a conseguir medalhar em três modalidades com direito a novo recorde. Zatopek, por sua vez, levou ouro nas outras disputas além de bater o recorde olímpico. Mas teve, também, algo notável no feito de Hassan: a corredora, que é muçulmana, subiu ao pódio usando hijab, indumentária religiosa proibida para atletas francesas.
Já falamos sobre o impacto que a proibição de vestimentas religiosas pode ter na participação de mulheres no esporte, sobretudo no país-sede da Olimpíada. Vale ressaltar que atletas representando a França não podem utilizar ou adereços contendo símbolos religiosos, que não se aplicam apenas ao islamismo: vale para qualquer religião, incluindo judaico-cristãs. De qualquer forma, ativistas internacionais apontam que a proibição do uso de vestes como o hijab funcionam como racismo religioso e são discriminatório contra uma categoria específica de mulheres que já são alvo de preconceito.
Mais ciência e menos sexismo
A pugilista Imane Khelif se tornou um símbolo nacional no seu país, a Argélia. A medalha de ouro conquistada na categoria -66kg foi uma resposta à humilhação pública a qual a atleta foi submetida durante essa edição dos Jogos Olímpicos. Em resposta, Imane já se pronunciou que vai processar quem proferiu comentários ofensivos a ela nas redes sociais. “O povo argelino me apoiou e me defendeu ferozmente e enfrentou as campanhas contra mim”, disse após a medalha de ouro.
Imane, assim como a chinesa Lin Yu-ting, também campeã olímpica em Paris, foram banidas de competições da Associação Internacional de Boxe (AIBA), associação de boxe que foi descredenciada do COI por diversas denúncias de corrupção e fraudes. A informação divulgada pela AIBA era que as duas atletas não tinham sido aprovadas no teste de gênero, sem especificar o exame nem divulgar os resultados.
“Tivemos o tal teste de gênero até 1999 e a ciência disse que não era mais confiável em relação aos cromossomos. Também nos foi dito que esse tipo de teste pode ser contra os direitos humanos, por ser intrusivo. Um novo sistema foi desenvolvido em acordo com todo mundo desde então. E nossa decisão é muita clara: mulheres devem ser permitidas de participar em competições femininas, e as duas são mulheres”, disse Thomas Bach, presidente do COI, reforçando que não se tratava de atletas transgênero, como chegou a ser veiculado.
Tanto Imane quando Lin são consideradas intersexo, possuindo cromossomos X e Y, mas registradas, crescidas e identificadas como mulheres. Não há consenso na literatura científica sobre como pessoas com diferentes composições cromossômicas devem ser categorizadas no esporte de elite, sobretudo porque algumas atletas intersexo são imunes à testosterona produzida pelo cromossomo masculino.
A discussão sobre a eligibilidade de atletas pautada na igualdade de condições para competição pode e deve existir, tanto que a proibição do doping é um desdobramento importante para o esporte de alto rendimento. O que não pode acontecer é tentar diminuir uma discussão abrangente e complexa a testes rasos e noções carregadas de sexismo do que é ser mulher.
Brasileiras de ouro, prata e bronze
Das 20 medalhas conquistadas pelo Brasil, 12 foram de mulheres e uma teve participação direta delas, que foi o bronze no judô por equipes. O aproveitamento, então, nem se fala: todas as três medalhas de ouro vieram de mulheres: judô na categoria +78 kg com Beatriz Souza, salto na ginástica artística com Rebeca Andrade e vôlei de praia com Ana Patrícia e Duda. Essa também foi a primeira vez que a delegação brasileira foi majoritariamente feminina: dos 289 atletas, foram 126 homens e 163 mulheres.
Essa mudança de composição da delegação brasileira também se refletiu na distribuição de medalhas ao longo das últimas três edições olímpicas, de acordo com levantamento do Comitê Olímpico do Brasil (COB). Na Rio-2016: 14,74% das medalhas vieram para o Brasil por atletas homens e 5,26% de mulheres. Em Tóquio, essa diferença caiu para 12,57% e 9,43%. E em Paris-2024, a virada: 12,60% dos pódios vieram de mulheres, enquanto 7,35% foram de homens e 1,5% modalidades mistas.
O Brasil passou a ter nova recordista de medalhas olímpicas, uma mulher: Rebeca Andrade, que em duas edições, Tóquio-2020 e Paris-2024, acumulou seis pódios e ultrapassou os cinco dos velejadores Torben Grael e Robert Scheidt. O número de multimedalhistas numa mesma edição olímpica também é maior entre mulheres: além de Rebeca, que conquistou quatro medalhas em Paris, Bia Souza levou duas medalhas no judô, assim como Larissa Pimenta. Do lado dos homens, o judoca William Lima foi o único, ao também garantir duas medalhas.
A delegação brasileira, aliás, foi a única além da Espanha que contou com mais mulheres do que homens. Se a gente ainda precisa correr atrás em diversas áreas para que as mulheres descubram e escolham o esporte, pelo menos no alto rendimento olímpico o trabalho delas está sendo reconhecido.