Polêmica entre hijab na França ganha novos contornos na Olimpíada

A vitória de Duda e Ana Patrícia sobre as egípcias Marwa Abdelhady e Doaa Elghobashy na estreia do vôlei de praia teve algo que chamou atenção além da boa atuação das brasileiras: a dupla africana usava hijab, vestimenta muçulmana que cobre os cabelos, trajava calça e camisa de manga longa e, por cima, uma blusa solta no corpo.

Essa não foi a primeira vez que a dupla participou de uma edição olímpica usando esses trajes: na Rio-2016, por exemplo, Doaa já tinha se apresentado dessa mesma forma nas areias de Copacabana. Marwa, na época, não cobria os cabelos, o que passou a fazer em Paris-2024.

Mas chama atenção essa vestimenta ser usada na França, que tem histórico polêmico em relação ao uso do hijab. Vale lembrar que na Copa do Mundo de 2019, realizada no país,a justiça francesa vetou que atletas muçulmanas utilizassem o véu mesmo após a liberação da Fifa em 2012. Foi apenas em 2023 que a marroquina Nouhaila Benzina tornou-se a primeira jogadora a usar hijab durante um Mundial, que foi realizado na Austrália e Nova Zelândia.

A velocista Sounkamba Sylla foi impedida de representar o país na cerimônia de abertura usando hijab

Voltando a Paris-2024, a atleta francesa Sounkamba Sylla foi impedida de participar da cerimônia de abertura da Olimpíada utilizando o hijab. Ela denunciou a proibição nas redes sociais: “Você é selecionada para disputar os Jogos Olímpicos realizados no seu país e descobre que não vai poder participar da cerimônia de abertura porque usa um lenço na cabeça”. Horas antes do evento, a organização, através da ministra do desporto Amelia Oudéa Castéra, permitiu que a velocista utilizasse um boné cobrindo os cabelos.

A França deixou de ter atletas defendendo o país por conta dessa proibição, como a jogadora de basquete Diaba Konate. Ela, que jogou no basquete universitário da Universidade da Califórnia, nos Estados Unidos, se aproximou do islamismo durante a pandemia, passando a utilizar o hijab. Com o veto francês, abriu mão de disputar a Olimpíada por não poder usar a indumentária. 

“Aproveitando esses últimos jogos antes de voltar para a França sabendo que podem ser os meus últimos, já que as políticas discriminatórias da federação francesa me afastam do esporte que amo. No Dia Internacional da Mulher, vamos lembrar de lutar pela equidade em todos os aspectos da vida, inclusive no esporte. Não deveria haver barreiras para mulheres na quadra ou em qualquer outro lugar”, disse no último 8 de março em suas redes sociais.

Diaba Konate optou por não defender a França no basquete olímpico

Mas por que isso acontece?

A França tem passado por polêmicas em relação à legislação do uso de vestimentas e símbolos religiosos por servidores e em espaços públicos, como escolas – o que envolve diretamente alunos e alunas. Desde 1905 existe a separação legal entre Igreja e Estado, e o secularismo é algo que o país defende como conceito central do republicanismo.

Em setembro do ano passado, o Ministério dos Desportos francês estabeleceu que estas vestes e ornamentos religiosos não poderiam ser utilizados por atletas, técnicos e árbitros franceses durante os Jogos Olímpicos, já que, neste período, eles são considerados servidores civis do país. O uso dessas indumentárias seriam, portanto, “contrário ao princípio de laicidade do estado”, que defende a neutralidade religiosa.

Após a decisão da França, o Comitê Olímpico Internacional (COI) se manifestou dizendo que essa era uma decisão do comitê local. Mas ressaltou que a regra não se aplicaria para atletas de outros países, como ficou claro com as atletas egípcias.

No entanto, organizações internacionais se voltaram contra a decisão do país-sede por ser discriminatória contra mulheres islâmicas, para quem cobrir os cabelos faz parte da identidade. Se não puderem fazer isso, estarão automaticamente afastadas não apenas dos esportes, mas dos espaços em que elas forem proibidas de utilizar as vestes.

“A proibição feita aos atletas franceses que portam véu de participar dos Jogos Olímpicos desrespeitam o direito internacional relativo aos direitos humanos e revelam a hipocrisia discriminatória das autoridades francesas e a covardia do COI”, declarou a Anistia Internacional em relatório publicado às vésperas de Paris-2024.

“Quando uma regra mira uma minoria, cria discriminação e desrespeita os direitos das pessoas, deveria ser um problema de todo mundo. Hoje, somos nós. Mas amanhã pode ser você”, acrescentou Helene Ba, co-fundadora do grupo Basketball Pour Toutes (Basquete Para Todas), na França. A iniciativa busca criar um espaço seguro de prática esportiva para jovens e mulheres de religião muçulmana.

Helene Ba é co-fundadora do grupo Basketball Pour Toutes (Basquete Para Todas), na França

E, para muitas atletas, a proibição do uso do véu ou hijab pune um grupo específico de mulheres que já é alvo de preconceito. De acordo Ibtihaj Muhammad, atleta olímpica de esgrima dos Estados Unidos, essas mulheres foram esquecidas do debate sobre a paridade de gênero nos Jogos Olímpicos – que, apesar da promessa do COI, não foi alcançada.

“A França clama que terá os primeiros Jogos com paridade de gênero, mas é risível dizer que terá paridade omitindo um grupo inteiro de pessoas dessa conversa de equidade. É vergonhoso”, lamentou.

Existe solução?

Claro que a ideia de restringir vestimentas religiosas para garantir a neutralidade religiosa não tem como objetivo principal banir a participação de atletas. Mas quando isso acontece, não é o caso de verificar se a regulação acaba sendo preconceituosa ou discriminatória? Porque, como disse Konate, “(o hijab) tem sido minha essência e parte de mim nos últimos três anos da minha vida”.

Ao serem proibidas de usarem o véu, essas atletas estão, automaticamente, excluídas da participação de grandes eventos esportivos. Proibidas de trabalhar. E mais: se a gente ampliar o espectro, há meninas e jovens que estão sendo privadas do convívio em sociedade por não terem a liberdade de usar o véu em espaços públicos. É como se estivéssemos pedindo a elas para escolher entre a própria identidade e viver em comunidade.

Além disso, há de se pensar o impacto nas gerações futuras e no próprio afastamento cultural do islamismo. “Crianças vão se perguntar ‘se eu quiser jogar, ser atleta, que partes de mim mesmo eu vou precisar mudar para fazer com que isso aconteça’? E eu acho que é injusto pedir isso a qualquer pessoa que seja”, conclui Muhammad.

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