*Entrevista produzida em parceria com a Nike
Quando a minha história começou ainda não existia a Ary Borges. Eu era a Ariadina ou só Ary, uma menina que nasceu em São Luís do Maranhão e sempre que podia corria para brincar na praia ou no campo de futebol que ficava atrás da casa da Dona Lindalva, avó que trouxe leveza a essa dura realidade de crescer longe da mãe e do pai.
Quando eu tinha dois anos de idade, meus pais foram em busca de trabalho no Sudeste para tentar uma vida melhor pra gente.
Fui criada pela minha avó e minha tia, que moravam muito perto da gente. Outra figura familiar também ganhou um posto importante na minha vida. O marido da minha tia, que eu considero como meu tio também, foi o primeiro que me apresentou o futebol. Ele me fez torcer pelo time do coração dele quando eu era criança e era a figura paterna que eu tive até os 10 anos, pela distância do meu pai que tinha ido morar em São Paulo.
Mas essa não é uma história de uma infância triste, muito pelo contrário. Graças a Deus sou nordestina, com muito orgulho. Nasci em um lugar abençoado. Morei muito perto da praia, sempre que podia eu corria pra areia e cresci brincando bastante.
O meu tio tinha um time de várzea na cidade e a sede do time era bem atrás da casa da minha avó e da casa da minha tia. Ou seja, tinha um campo de futebol, literalmente, atrás da onde eu morava. Meu tio me chamava para jogar futebol quando eu chegava da escola. E eu e meu primo também sempre tivemos acesso livre ao campo, porque, se alguém perguntasse, era só dizer que era a neta da Dona Lindalva e o filho do Seu Gabriel.
Eu acabei crescendo nesse meio, viajando com meu tio e meu primo pros jogos do time da cidade e brincando de jogar bola com as outras crianças. Depois de um tempo, meu primo começou a treinar fundamentos do futebol comigo, me colocou pra dar passes, essas coisas. Mas quando me perguntavam o que eu queria ser quando crescer, eu não respondia que queria ser jogadora de futebol, até porque eu não assistia mulheres jogando. Na minha cidade, o futebol feminino é muito precário até hoje. Esse nunca foi meu sonho de criança.
O futebol entrou por acaso na minha vida.
Diante de tantas histórias em que a família não compreende que meninas também podem cultivar uma paixão pelo futebol, eu fui abençoada por ter nascido em uma família muito ligada ao esporte que sempre me impulsionou para ser jogadora.
Passada essa infância feliz em São Luís, eu chego na parte da minha história em que me mudo para São Paulo para, enfim, encontrar os meus pais. Digamos que fui conhecê-los, porque a essa altura, com 10 anos, eu já não tinha nenhuma lembrança deles. Eu só falava com eles por telefone.
Mas antes de me mudar, meu tio ligou para o meu pai dizendo que talvez em São Paulo eu teria mais oportunidade para seguir no futebol, se essa fosse a minha vontade. Meu pai não levou tão a sério isso. Ele queria mesmo que eu estudasse.
Até que um dia ele voltou do trabalho mais cedo e passou por uma quadra perto da nossa casa onde eu jogava com os meninos da minha escola. Quando voltei pra casa, ele me contou que me viu jogando, reconheceu que eu realmente jogava bem e sugeriu da gente buscar uma escolinha de futebol. A partir daí, ele começou a me levar pra jogar em uma escolinha em Santo Amaro.
Foi um primeiro passo, mas eram poucas as meninas no time e não era possível disputar um jogo maior. Então, meu pai deu a ideia de eu treinar com os meninos. Ele precisou assinar um termo de responsabilização caso acontecesse algo comigo – uma menina jogando entre os meninos. No fim, a escolinha aceitou. Eu inclusive participei de peneiras (as famosas seletivas). Mas sempre ouvia o mesmo: “Poxa, você joga muito bem, mas não vim aqui para ver meninas, vim para buscar talentos entre os meninos”.
Depois de um ano e meio treinando nessa escolinha com os meninos, meu pai veio conversar comigo sobre um lugar onde ele passava de ônibus na região da Vila Mariana, onde ele trabalhava, e sempre via umas meninas vestidas com uma camisa roxa escrito “futebol”. Ali parecia um lugar que lidava com o futebol feminino de maneira mais profissional. Era o Centro Olímpico, de onde saíram várias atletas que atualmente jogam em alto nível e estão na seleção brasileira! Acho que é o maior clube formador do futebol feminino no Brasil.
Foi quando tudo mudou.
O Centro Olímpico foi um divisor de águas pra mim. Foi onde eu comecei a levar o esporte mais a sério. Foi lá que falei: “Opa, esse é o meu sonho realmente, é o que eu sei fazer, é nisso que sou boa. Quero viver disso, é o que eu amo e é isso que eu nasci para ser”.
Eu entrei no Centro Olímpico quando tinha cerca de 12 anos e uma chave mudou na minha cabeça por volta dos 13. Comecei a ter uma vida mais parecida com a de uma atleta, passei a entender que precisava ser boa na escola para poder jogar futebol e, por isso, eu precisaria mudar algumas atitudes se eu quisesse realmente fazer o que gostava.
No Centro Olímpico, eu passei pelas categorias sub-13, sub-15 e sub-17 e joguei um ano no profissional. Também comecei a ter experiências nas categorias de base da seleção brasileira. É óbvio que o cenário do futebol feminino naquela época não era tão bom, mas ali eu sempre vi que eu tinha um lugar que poderia me dar um futuro.
Depois, graças ao Jonas Urias, que foi treinador do Centro Olímpico entre 2017 e 2018 e é o atual técnico da seleção brasileira sub-20, eu fui jogar no Sport, de Recife, meu primeiro clube como jogadora profissional.
Joguei no Sport em 2017 e 2018 e no ano seguinte eu cheguei ao São Paulo. Antes disso, o Palmeiras chegou a me procurar, mas acabei indo para o São Paulo, onde a Ariadina que nem sonhava em ser jogadora de futebol deu lugar de vez à Ary Borges, agora, uma atleta profissional.
Na temporada seguinte, recebi um novo convite para integrar o Palmeiras, que veio acompanhado por um plano estratégico para alavancar minha carreira e a decisão de aceitar defender o clube rival. Minha ida para o Palmeiras foi muito complicada.
Mas a chegada foi muito tranquila. Depois que eu passei por toda aquela situação, pensei: “O furacão passou, agora preciso me concentrar em defender a camisa do Palmeiras. E fui muito bem recebida pelos torcedores e por todo mundo do time.
Foram três anos difíceis, mas com roteiro que eu repetiria se soubesse o fim. Eu saí do Palmeiras em um momento muito bacana, depois de conquistar um título de Libertadores e do Paulistão, jogando ao lado de jogadoras que eu sou fã, sendo uma das maiores artilheiras da história do clube e podendo ajudar o time a criar sua história dentro do futebol feminino.
O Palmeiras virou minha casa, tenho um carinho muito grande pelo clube e sou muito grata por tudo. Foi vestindo a camisa do Palmeiras que eu cheguei à seleção brasileira, um dos meus grandes sonhos.
A primeira vez que fui convocada pra seleção foi em 2020. Era um dia normal de treino, mas quando acabou todo mundo correu na minha direção me abraçando e dando os parabéns. Eu não estava entendendo até me mostrarem o meu nome na lista de convocação. Fiquei muito feliz, liguei de imediato pra minha família. Minha mãe e meu pai ficaram muito emocionados. Eu também, porque é a realização de um sonho poder vestir a camisa do seu país. Eu já tinha passado por isso nas categorias de base da seleção brasileira, mas com a equipe principal foi uma emoção difícil de descrever.
Só que a responsabilidade de vestir a amarelinha também me assustou quando cheguei na seleção. Eu senti que não merecia estar lá. Em setembro de 2021, tivemos dois amistosos contra a Argentina, que foram disputados na Paraíba, em que eu não sentia que eu jogava bola suficiente para estar na seleção e quando entrei em campo não consegui mostrar o meu futebol. No mês seguinte, em outros amistosos contra a Austrália, a Pia me chamou para conversar. Ela me mostrou alguns vídeos e disse: “Eu quero que você faça isso, isso e isso. Por que você não fez isso aqui nesse jogo?”
Depois dessa conversa, eu voltei pro meu quarto e pensei: “Poxa, não fiz isso apenas por falta de confiança. Se a treinadora da seleção brasileira confia que eu posso fazer isso, por que eu mesma não vou confiar? Antes do jogo contra a Austrália, a Pia me avisou que eu seria titular e eu só pensei que precisava agarrar essa chance.
Fiz um bom jogo naquele amistoso e me senti muito mais solta dentro de campo. Ali foi um divisor de águas. Comecei a ter uma sequência melhor e fui titular em grande parte dos jogos desde então.
Depois de um 2022 dos sonhos com a seleção e o Palmeiras, eu vim jogar no Racing Louisville, dos Estados Unidos. Pelo nível de exigência ser muito mais alto, principalmente físico, jogar na liga americana me ajudou a me preparar ainda mais para o Mundial entre seleções. Sei que ainda tenho muito para crescer, mas me sinto cada vez mais madura para jogar dentro da seleção que passou por um grande processo de renovação e assumir esse papel de responsabilidade na equipe, que é muito grande.
Eu tenho 23 anos, ainda sou bem nova. Assumir essa responsabilidade na seleção foi um pouco complicado no começo. Mas temos essa mescla com jogadoras experientes que nos ajudam em determinadas situações.
Há três anos, minha mãe estava me mandando mensagem para tirar foto com a Marta nas minhas primeiras chances na seleção. Ela queria colocar a foto em um porta retrato. Lembro de ficar um pouco receosa em jogar junto dela. Era a Marta!
Mas, quando cheguei na seleção, conheci um ser humano ímpar, de um coração gigante. A Marta sempre senta junto da galera mais nova, tenta conversar com quem é mais tímida, quer saber qual é a dança do momento e o que está ensaiando para comemorar quando marcar o gol. Antes de vir jogar nos Estados Unidos, ela foi uma das pessoas que eu conversei e pedi conselhos.
Deu muito certo. Em 27 de junho, eu ouvi o meu nome entre as convocadas do Brasil para o Mundial, a primeira daquela menina que saiu de São Luís do Maranhão como Ariadina e, agora, vai vestir a camisa 17 da seleção como Ary Borges em um Mundial.
Eu não tenho nem palavras para descrever como é ouvir o nome ser chamado para o Mundial. É um sonho poder representar o país jogando um campeonato tão importante e poder ver minha família me assistindo. No ano passado, já foi incrível ter eles me acompanhando em um jogo da seleção em uma competição importante, mas pensar na dimensão de um Mundial é muito especial.
As expectativas estão altas. Como grupo, nós temos muita confiança no trabalho que está sendo feito na seleção brasileira. A Finalíssima, disputada em abril, é um belo exemplo disso. Ter vencido o amistoso seguinte sobre a Alemanha (por 2 a 1 com gols de Tamires e Ary Borges) também nos trouxe um espírito diferente, nos deixou com uma outra motivação.
E aquela foto ao lado da Marta?
Eu só tive coragem de pedir há pouco tempo. Agora, minha mãe vai ter que providenciar mais porta-retrato para as outras memórias que esse Mundial promete deixar. Além de ídola e companheira de seleção, Marta é uma inspiração para qualquer atleta, ainda mais sendo nordestina e com voz ativa, como eu sempre fui desde os tempos de escola. Eu sou uma mulher negra que joga futebol e isso faz com que muita gente se sinta representada por mim. Fico muito feliz de poder ser quem eu sou e conscientizar um pouco as pessoas sobre questões sociais que acredito serem importantes.
Esse não é o fim da história. Mas, sem dúvidas, é um capítulo especial na vida da Ariadina ou da Ary Borges. Juntas, a menina que sequer sabia que podia sonhar em ser jogadora de futebol e a atleta com papel de destaque nesta seleção brasileira renovada se juntam para estrear no Mundial – a mesma que marcará a sexta e última edição da Marta, maior artilheira da Copa, com 17 gols. Se a gente vai trazer o título? Difícil dizer, mas espero que a gente colha bons frutos dessa Copa. Confiança, é esse nosso espírito agora.
Sobre as meninas de São Luís do Maranhão que hoje brincam de jogar bola? Elas vão poder me ver jogando o Mundial na televisão e saber desde pequenas que também podem sonhar em ser jogadora de futebol.