Saulo Cruz/COB
Primeira mulher a ser técnica dentro da seleção brasileira de vôlei, a campeã olímpica Fofão revela que recebeu o convite para assumir a seleção feminina sub-17 com surpresa. Apesar de confessar ter ficado um tanto assustada, a ex-jogadora sabia que estava preparada para exercer a função. “Fiz cursos e tudo o que tinha que fazer. Poucas pessoas sabem, porque eu não divulgava e era uma coisa muito minha se não a pressão seria maior”.
Ainda assim, a maior surpresa da Fofão foi descobrir que ela seria a primeira mulher a ocupar esse cargo na seleção brasileira de vôlei de quadra. “Uau, que loucura. Eu esperava ser apenas mais uma”, desabafa a ex-levantadora dona de uma medalha de ouro e duas de bronze olímpicas, em entrevista exclusiva ao Dibradoras, que pode ser conferida abaixo.
A equipe nacional feminina foi criada em 1951. Desde então, as brasileiras subiram ao pódio em cinco Olimpíadas, conquistando dois ouros, uma prata e dois bronzes. Fofão estava junto em três dessas ocasiões. Mas foram necessários 71 anos desde a fundação da equipe para que mulheres assumissem cargos nas comissões técnicas das seleções brasileiras de vôlei de quadra. Em 2022, Karina de Souza tornou-se auxiliar da seleção feminina sub-21 e Mirtes Benko, da sub-19; ambas com mais de 20 anos de experiência na modalidade.
Neste ano, o número subiu para cinco. Teve a chegada da Fofão, que convidou Tati Ribas, técnica do Curitiba na última Superliga B, para ser assistente técnica dela na equipe sub-17 feminina, que também conta com Lenharo Appolinario Cremasco como auxiliar. Na equipe feminina sub-19, a auxiliar técnica é Luiza Scher Di Maio Bonente. Já Mirtes virou auxiliar técnica da equipe sub-21 no lugar de Karina, que está trabalhando com a seleção de Santa Catarina na Divisão Especial sub-19 feminina.
O desejo, porém, é que esse seja só início de uma nova configuração nas comissões técnicas dentro de clubes e seleções. Alinhado com esse objetivo, a Confederação Brasileira de Vôlei (CBV) abriu um programa de capacitação para treinadoras de vôlei de quadra, com 30 vagas para um curso com módulos on-line e presenciais (no Centro de Treinamento em Saquarema). As inscrições vão até o dia 16 de junho e podem ser feitas pela ficha de cadastro disponibilizada no site da CBV. A lista das selecionadas será divulgada em 26 de junho. O projeto tem apoio da área da “Mulher no Esporte” do Comitê Olímpico do Brasil (COB).
“Este programa de capacitação é mais uma iniciativa da CBV que reafirma o nosso compromisso com a promoção da equidade de gênero e a valorização da diversidade. Queremos reforçar a inclusão e o diálogo, em prol da igualdade de representação e de oportunidades. Temos muitas profissionais talentosas e experientes no voleibol brasileiro e queremos que elas se tornem referências e sirvam de exemplo para que surjam cada vez mais treinadoras no país. Essa parceria com o COB é mais um passo nessa caminhada”, explica Luciana de Oliveira, diretora de Projetos Especiais da CBV.
ENTREVISTA FOFÃO
Como recebeu o convite para ser técnica da seleção feminina de vôlei sub-17 e o qual o sentimento por ser a primeira mulher a treinar uma equipe da seleção?
Primeiro foi uma surpresa quando recebi o convite da CBV para treinar a seleção sub-17. Eu não esperava e fiquei um pouco assustada, pensando como eu lidaria com tudo isso. Sempre pensei que eu iria vivenciar isso em algum momento. Mas não demorei para tomar uma decisão. Em dois dias, decidi que eu estou preparada e quero viver essa experiência. Aceitei o convite e fiquei extremamente surpresa ao saber que eu seria a primeira mulher a ocupar esse cargo. Pensei: ‘Uau, que loucura. Eu esperava ser apenas mais uma’. Sinto uma imensa felicidade e orgulho por representar as mulheres em uma função em que elas ainda não estavam presentes.
Como foi a transição após se aposentar como jogadora em 2015? Você manteve contato com o vôlei desde então?
Eu decidi que não queria mais saber de vôlei quando parei de jogar. Tentei me afastar por um tempo, mas percebi que ainda gostava muito do esporte. Não conseguia me desligar completamente. Quando dedicamos tanto tempo a um esporte, é difícil se desvincular completamente. Então, dei um tempo para aproveitar a vida, mas percebi que tudo o que eu fazia me levava de volta ao vôlei. Meu coração ainda se acelerava quando falavam sobre vôlei, quando eu participava de clínicas e eventos relacionados. Comecei a me envolver em algumas atividades e sempre, quando me perguntavam se eu seria técnica, eu falava que não descartava essa possibilidade. Eu sentia que um dia eu viveria isso, só não sabia quando.
Como foi essa preparação para se tornar treinadora?
Fiz cursos, incluindo o de nível 3 da CBV, e tudo que tinha de fazer e deixei essa ideia guardadinha pensando que uma hora a oportunidade certa apareceria. E quando uma oportunidade aparecer e eu sentir que estou preparada, vou abraçar. Eu sempre fui fazendo as minhas coisas por fora, poucas pessoas sabem que eu fiz tudo isso, porque eu não divulgava e era uma coisa muito minha se não a pressão seria maior. Mas eu sempre estava me preparando, conversando, observando. Esse tempo todo foi um treinamento para mim e, quando chegou o momento, senti que estava pronta. Lógico que eu ainda preciso adquirir mais experiência, mas o que eu consigo colocar em prática o que vivi por 30 anos de carreira. Eu não nasci jogadora de vôlei, eu aprendi a ser jogadora de vôlei. Da mesma forma, acredito que tenho a capacidade de ensinar. Assim, o vôlei foi se tornando cada vez mais presente, comecei a ensinar as pessoas pela internet e acabei me envolvendo demais, por mais que eu tenha aposentado falando que não queria tanto essa vida. A verdade é que tenho muita paixão ainda pelo vôlei e saber que estarei do outro lado, tentando encontrar e fazer talentos tem me motivado bastante.
Você chegou a dar aula de vôlei também, fez vídeos dando dicas nas redes sociais.
Eu sempre fiz clínicas e participei de eventos relacionados ao vôlei. Na pandemia, comecei a fazer vídeos ensinando vôlei para as pessoas que ficavam em casa. Porque eu comecei a pegar a bola e brincar na minha casa, então pensei que eu poderia filmar e daí comecei a dar dicas. Criei um curso também e foi indo! Cada vez, fui me envolvendo mais. As pessoas me perguntavam muito como dar um toque. Como vou ensinar toque mandando mensagem? Tem que mostrar. Assim, a coisa foi tomando uma proporção, eu percebi que ainda ficava ansiosa quando falava de vôlei. Percebi que eu tinha que continuar fazendo o que eu realmente gosto e o que eu realmente sei fazer de melhor. A cada ano, foi uma nova descoberta da minha capacidade, do que eu tinha potencial para fazer.
Outras mulheres trabalharam nas comissões das seleções pela primeira vez em 2022, como a Karina de Souza e a Mirtes Benko. Qual a relevância do pioneirismo delas, que têm mais de 20 anos de experiência no vôlei, para que mais mulheres ocupem esses espaços?
Hoje em dia, quando chego no centro de treinamento da seleção brasileira em Saquarema, é evidente que as comissões técnicas não são mais dominadas exclusivamente por homens. Agora, temos mulheres ocupando esses espaços. Antes, no máximo, víamos uma psicóloga aqui e outra ali. Agora, estão sendo dadas oportunidades a essas mulheres que são extremamente competentes. A visão das pessoas está mudando nesse aspecto. Têm muitas mulheres que fazem trabalhos bacanas e que são extremamente profissionais, mas que ainda não tinham tido oportunidade de estar próximas de uma seleção brasileira. isso é importante para sabermos que é preciso só de oportunidade. Tenho certeza que tem muitas mulheres competentes aí que ainda vão dar muito orgulho pra gente.
Tem mais ex-atletas que também desejam se tornar técnicas de vôlei?
Eu passei por várias gerações de jogadoras dentro de quadra e eu sempre ficava percebendo as atletas que tinham perfil pra continuar trabalhando com vôlei depois de encerrarem a carreira, mas dificilmente isso acontecia. Hoje, tem muitas atletas e ex-atletas se formando, fazendo cursos, se interessando mais por isso. Algumas me perguntam como eu fiz pra virar técnica. Eu não sei se o fato de eu ter assumindo o comando da seleção sub-17 despertou mais essa vontade, por ver que é possível estar numa comissão técnica. Mas vejo mais meninas comentando sobre esse desejo e sei que tem ex-atletas que estão nesse caminho. Logo mais vamos ver essas mulheres trabalhando em comissões técnicas de clubes ou na parte de gestão, como a Sheila. As portas estão se abrindo e as mulheres estão se interessando mais. O ex-atleta tem uma experiência que quando junta com profissionais de outras formações dá um resultado muito bacana. O vôlei só tem a ganhar com isso. Estou bem feliz de ver essa movimentação das minhas ex-colegas de quadra.
Como a sua experiência de jogadora, principalmente por ter sido levantadora, colaborou para o seu trabalho de treinadora hoje?
Eu como levantadora, tinha uma preocupação não só dentro da quadra, mas fora também. Fui sempre uma pessoa muito observadora em todos os sentidos, acho que a levantadora tem uma sensibilidade diferenciada dos outros jogadores, por ver o todo. Eu sempre fui muito de observar e poder auxiliar e percebo que continuo com essa mesma postura. Isso está sendo bom para mim, porque quando estamos formando um grupo novo, temos que ter um olhar muito amplo de tudo. Eu sempre achei que isso fosse me atrapalhar na vida, porque eu pensava que precisava relaxar um pouco. Mas, muito pelo contrário, porque agora eu preciso estar observando todas as minhas atletas.
Quando você jogava, tinha uma postura que parecia muito tranquila em quadra. Isso permanece como treinadora?
Tenho a minha seriedade, mas sei o momento em que não posso pressionar demais. Estou trabalhando com uma categoria que tem meninas de 13 a 15 anos, tenho que ter muito cuidado para saber encontrar o meio termo. Da mesma forma que eu falo alguma coisa com tom de voz mais forte para elas entenderem os momentos que precisam fazer o que está sendo pedido, eu também tento dar aquela segurada nas situações em que elas podem relaxar. Percebi que, às vezes, eu fico meio brava com elas, mas não sou aquela técnica muito brava, porque não é o meu perfil, não adianta. Eu sei o momento de chamar atenção um pouquinho mais firme, porque elas têm que entender que existem momentos de pressão e cobrança, eu não vou poder protegê-las o tempo todo dentro de quadra na hora do jogo. A minha vontade vai ser essa, mas elas que vão tomar as decisões. Ainda mais sendo uma categoria mais jovem onde elas estão ainda no mundo desconhecido que é uma seleção brasileira. Vejo coisas que eu percebo uma inocência que é muito lindo de ver, e não queremos que elas percam isso, mas também queremos mostrar a realidade do voleibol.
Como que as meninas encaram ter como técnica a Fofão, donas de três medalhas olímpicas?
É muito engraçado, porque a primeira coisa que chamou a atenção delas quando elas chegaram foi que era a Fofão quem seria a treinadora delas. Era algo muito distante para elas, então precisei quebrar essa barreira. Elas não conseguiam relaxar, porque olhavam pra mim como jogadora ainda. Fiquei preocupada se elas iam conseguir relaxar. Mas no segundo dia começaram a ficar um pouquinho mais à vontade. Estou tentando modificar um pouquinho tudo isso, mas é com o tempo que elas vão se acostumando e vendo que estamos jogando no mesmo time.
A CBV lançou um programa de capacitação para treinadoras de vôlei, com apoio da área “Mulher no Esporte”, do COB. Qual a importância de iniciativas como essa?
Eu sempre vejo pelo lado positivo. Temos muitas mulheres que trabalham ou querem trabalhar nos esportes. Elas precisam ter mais espaços em qualquer área, seja na gestão fora de quadra ou dentro dela. Acho que isso vai valorizando cada vez mais a mulher e ela vai vendo que estão nos olhando de outra maneira. Está sendo dada uma oportunidade no programa de capacitação. É a oportunidade de a mulher se descobrir e analisar onde se encaixa da melhor maneira. A mulher tem muita capacidade de fazer tudo isso que precisa ser feito. O que precisamos é espaço.
O que ela tá achando dessa renovação da Seleção Brasileira?
Esses processos de renovação tem que ter muita tranquilidade. É preciso tempo até mesmo para jogadoras se adaptarem ao ritmo de seleção brasileira e são muitas jogadoras jovens nessa seleção atualmente. Mas, independentemente da renovação, o determinante é o comportamento das jogadoras em quadra. Na Liga das Nações, pegamos logo de cara uma China com aquela experiência e vimos as meninas do Brasil jogando de igual para igual. Caramba, já é um bom início! A maneira como o time encara o jogo é muito mais importante para mim do que se está bem entrosado ou não neste momento. É aquela coisa de estar em quadra ali realmente defendendo a camisa do Brasil, e isso é das jogadoras. Mas sinto que o Zé Roberto tem o time nas mãos. As jogadoras são jovens, mas com muito potencial. Elas deram um salto de amadurecimento e têm capacidade de jogar de igual para igual com as seleções fortes. Acho que o Brasil vai fazer bonito e vai continuar nos dando muitas alegrias.
Como enxerga o trabalho de formação das categorias de base aqui no Brasil tanto em clubes quanto em escolas, em termos de investimento, estrutura, competições?
O vôlei de base no Brasil tem muitas pessoas que fazem um excelente trabalho, tanto em escolas colégios como em clubes. Não é à toa que temos muito material humano. Isso só é possível porque alguém formou essas atletas. Mas, às vezes, falta uma estrutura melhor para esses profissionais terem mais capacidade de dar continuidade ao trabalho. Alguns têm projetos bacanas que conseguem se sustentar bem, mas outros sobrevivem na raça. Observando vários campeonatos pelo Brasil, vamos conhecendo as histórias e valorizando ainda mais o trabalho desse treinadores e treinadoras, que continuam formando os muitos talentos que temos. Se todo estado tivesse um time adulto de vôlei, isso motivaria bastante a continuidade dos projetos para que nossos talentos cheguem até a idade de se profissionalizar. Mas, muitas vezes, as meninas têm que decidir entre estudar ou seguir no esporte.