Técnica da Ferroviária “carrega traumas” da homofobia e luta por mundo mais tolerante para a filha

(Foto: Tiago Pavini/Ferroviária SAF)

Foram mais de 20 anos de carreira como jogadora de futebol e agora, aos 41 anos, Jéssica de Lima experimenta novas sensações. Uma delas é sua primeira oportunidade como treinadora de um time profissional feminino – ela assumiu o comando da Ferroviária no começo de setembro – e a segunda e mais transformadora é a maternidade.

Mãe da pequena Luísa, fruto do relacionamento com sua companheira Milene Souza, a treinadora revela que sempre sonhou em ser mãe de menina. “A Luísa chega em um mundo melhor do que o meu no sentido de tolerância. Pelo menos ela vai ter duas mães que irão conseguir dar condições pra ela entender que ela pode ser quem quiser ser, sem problema nenhum”, declarou em entrevista exclusiva às Dibradoras.

“Tudo na minha vida eu tive que brigar para conquistar” 

Jéssica é a segunda filha entre quatro irmãos e, desde quando foi aprovada em uma peneira para defender o Marília, aos 16 anos, ela passou a viver longe do ambiente familiar. O pai era linha dura, ela cresceu com privações e ouvindo a vizinhança falar que futebol não era coisa de menina. “Ele (o pai) não era muito de conversar e eu era moleca. Ele viajava muito e quando chegava final de semana, ele trancava o portão pra gente não sair na rua. Era conservador para muitas coisas”, declarou.

Conviver com o preconceito dentro e fora de casa foi muito difícil para Jéssica durante a adolescência e vida adulta. “Eu carrego traumas até hoje, de ser maltratada pela minha sexualidade. Ser ofendida, invadida na sua privacidade tão íntima e qualquer um achar que tem o direito de te expor. De estar jogando na rua e, desde pequena, ouvir coisas… eu vou carregar isso pro resto da vida. Tenho muitas inseguranças e questionamentos, a culpa cristã é muito forte na gente, não adianta. Todos os tipos de situações que te coloquem em inferioridade, é uma briga constante com o seu eu pra você não se permitir ser pequena, senão você entra na autossabotagem. Fiz muita terapia pra trabalhar isso dentro de mim. No esporte foi onde eu consegui colocar toda essa minha agressividade pra fora, você despeja tudo ali. Mas e quando você não está no esporte?”, declarou.

A treinadora reforça que a falta de diálogo em casa e o medo de rejeição permearam sua vida durante a juventude até a fase da adulta, mas com a chegada da Luísa, ela enxerga um futuro menos preconceituoso para sua filha. “Saí de casa com 16 anos e até essa idade eu tinha uma imagem julgadora por parte da minha família. E por mais que volte, com 35 anos, você ainda tem aquela imagem de antes, também tinha uma barreira dentro de mim. Não foi fácil, mas tudo na minha vida eu tive que brigar para conquistar. Tanto é que em todo lugar em que eu estou, eu entro reivindicando e saio reivindicando. Acho que não vou fugir disso, ainda mais com uma filha agora. E tudo mudou, o mundo ficou um pouco mais tolerante, a gente consegue ter uma possibilidade de vida melhor”, acrescentou.

É importante destacar que o Brasil é o país que mais mata a população LGBTQIA+. O Relatório do Observatório de Mortes e Violências contra LGBTQIA+ – divulgado em maio deste ano – mostra que no ano passado 316 mortes foram registradas no país, ante 237 em 2020. O preconceito e a desinformação dificultam o avanço da pauta LGBTQIA+, mas Jéssica enxerga uma postura diferente da nova geração, especialmente nas atletas mais jovens.

É uma geração que tem muito mais consciência e acesso à informação, e é muito questionadora. As conversas de hoje não são mais como antigamente, que tinha muito mais imposição. As mais novas são muito mais abertas, antenadas. Elas sabem se defender e ter mais falas para combater o preconceito do que eu tinha quando mais jovem. Eu era muito tímida, não conseguia me expor. Elas são diferentes”, pontua.

“O único lugar em que eu era bem aceita jogando futebol era na minha rua”
(Foto: Leo Roveroni-Assessiva Comunicação)

Nascida em Iacanga (cidade que fica a 50km de Bauru), Jéssica cresceu sem referências femininas no esporte e, até hoje, não sabe dizer o que a fez gostar de futebol.

“Existia uma resistência dentro de casa e na escola, sim. Não conseguia jogar futebol com os meninos porque ouvia muitos xingamentos e eu não conseguia ficar. Não dava. O único lugar em que eu era bem aceita jogando futebol era na minha rua, com as crianças que me conheciam”, completou a ex-atleta.

Como meio-campista, Jéssica defendeu o Rio Preto por 19 temporadas (conquistando o título brasileiro em 2015), três vices (2016, 2017 e 2018), além do bicampeonato paulista (em 2016 e 2017). Ela jogou também no São Paulo, Palmeiras e no Marsalla, time do futebol italiano.

(Foto: Leo Roveroni-Assessiva Comunicação)

Formada em Educação Física, Jéssica contou que vivia um período de incertezas quando era atleta (uma “eterna pandemia”, como ela mesma descreveu) e, para conseguir se sustentar, decidiu abrir uma escolinha de futebol para meninas em parceria com a Secretaria de Esportes de São José do Rio Preto em 2008. Ainda assim, a vida não era fácil e em 2015 ela estava decidida a parar de jogar. Mas aí, Dorotéia Inojo (presidente do Rio Preto) sugeriu que ela seguisse como atleta do time e também ocupasse o cargo de preparadora física. E foi assim, acumulando funções, que ela finalizou sua carreira em 2018, jogando uma final de Campeonato Brasileiro.

“Essa identidade da Ferrinha se mistura com a minha”

Um ano e meio depois de se aposentar, Jéssica assumiu o posto de auxiliar técnica de Jonas Urias na Seleção Brasileira Sub-20, cargo que ocupou até agosto, quando a equipe conquistou a medalha de bronze no Mundial da categoria.

Foto: Thais Magalhães/CBF

Depois da experiência vivida na Seleção Brasileira Sub-20, ela chegou para comandar a Ferroviária com enormes desafios pela frente: a classificação para as fases decisivas do Paulista Feminino e brigar pelo terceiro título da Libertadores para a equipe de Araraquara.

“Cheguei no meio de uma competição (Paulista) e com um elenco já montado. Eu não quis mudar muita coisa, porque acho que isso bagunça muito a cabeça da atleta, falo por experiência própria. Priorizei um pouco na parte defensiva, que acho que é o que precisa melhorar e que causa menos impacto na estrutura na equipe. E depois começamos a trabalhar melhor a questão ofensiva”, detalhou a comandante.

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Jéssica revelou que recusou cinco convites de clubes enquanto estava na Seleção, mas depois do Mundial Sub-20 e trabalhando sem nenhuma segurança financeira na CBF – ela não era contratada pela entidade e só recebia por dias de trabalho quando havia convocações – decidiu aceitar a proposta da Ferroviária, que a contratou no regime CLT.

Um dos fatores que me fez optar pela saída (da CBF) é porque hoje eu sou mãe, tenho um ser humano que depende de mim e tenho que ter o mínimo de segurança financeira. E aí veio essa proposta e sabe quando você sente uma sensação muito louca? Eu tive a certeza que deveria aceitar. Primeiro porque é o time que eu mais joguei contra (como atleta), eu conheço muito bem a Ferroviária, a cultura da cidade, a forte presença das mulheres no clube e é perto de Rio Preto, onde posso ficar perto da minha família. Então, pra eu fazer essa transição e ter minha primeira experiência oficialmente como treinadora, visualizei que era o melhor lugar possível”, contou.

A equipe de Araraquara estreia nesta quinta-feira (13) na Libertadores contra o Club Ñañas, do Equador, e ainda terá pela frente o Defensor Sporting, do Uruguai e o Boca Juniors, da Argentina. “Vamos enfrentar equipes copeiras, que gostam desse tipo de competição e que melhoraram muito no entendimento do jogo. Vai ser muito difícil o nível desse ano. Acho que (a competição) pode melhorar em termos de organização e de duração do campeonato”, declarou.

Elenco da Ferroviária em treinamento no Equador para a estreia na Libertadores (Foto: Tiago Pavini/Ferroviária SAF)

Sem colocar pressão sobre si, Jessica declarou que o DNA das Guerreiras Grenás tem muito a ver com ela e promete entregar tudo dentro de campo. “Falo pras meninas, quando eu jogava contra a Ferroviária, elas poderiam estar na situação que fosse, mas era osso duro de roer. É um time que vende muito caro as situações. Às vezes não estava num momento bom, mas era muito competitivo. Essa identidade da Ferrinha se mistura com a minha. Também fui uma jogadora de acreditar muito, de ganhar, de lutar até o fim, isso casa muito com meu perfil de ex-atleta. E gosto de competições de mata porque é a mais raiz do futebol”, finalizou.

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