Era janeiro de 2019, e Kerolin estava prestes a realizar seu maior sonho. Aos 19 anos, a atacante tinha vivido uma temporada incrível em 2018 vestindo a camisa da Ponte Preta e seu bom desempenho rendeu convocações para a seleção brasileira principal. Ela estava na Granja Comary para os treinos do início do ano visando a Copa do Mundo que aconteceria na França em junho.
Uma ligação recebida naquele dia mudaria tudo. “Recebemos uma notificação. Seu antidoping deu positivo”. A frase dita pela técnica Ana Lúcia Gonçalves que, junto com Kerolin, havia fechado contrato com o Palmeiras para aquele ano, assustou. Mas a atacante estava certa de que seria alguma piada de mau gosto. “Não estou gostando dessa brincadeira”, respondeu. E não era brincadeira, era só o início do pesadelo.
As substâncias proibidas detectadas no exame antidoping de Kerolin (feito para a disputa da Libertadores de 2018 pelo Audax) eram GW1516 (hormônio modulador) e probenecida (diurético). Ela até hoje diz que não sabe o que ocasionou o doping. Já desconfiou dos produtos que usava no cabelo, das vitaminas que foi orientada a tomar, enfim. “Já pedi muito para Deus me mostrar de onde veio isso. Mas hoje eu só quero deixar essa história para trás”.
Naquela época, em 2018, a maioria dos clubes femininos não era profissional e não havia tanta preocupação das comissões em orientar corretamente as jogadoras sobre doping. Elas mesmas tinham poucas informações sobre o assunto. Hoje, Kerolin não toma nem remédio de dor de cabeça.
“Deixo a dor passar sozinha, não me arrisco. Se eu tô bebendo água em um restaurante e saio para ir ao banheiro, quando eu volto, eu não tomo mais aquela água. Não porque não confio nas pessoas, mas eu sei o que eu passei”.
E o que ela passou – antes do doping e depois do doping – faria muitos desistirem no meio do caminho.
Aprendendo a driblar com um pitbull
Kerolin nasceu no interior de São Paulo, em Bauru, mas foi em Campinas que passou a maior parte da sua vida. A mãe se separou do pai e mudou para lá onde, sozinha, criou os cinco filhos – três mulheres e dois homens. Kerolin é a mais velha, a única com aptidão para jogar bola. Se os irmãos não compartilhavam da mesma paixão (ou ao menos da mesma habilidade), a garota recorria aos primos e passava o dia jogando com eles em um campinho perto do lugar onde morava.
Sua brincadeira favorita, além de jogar com os meninos, era brincar com o pitbull que aparecia no gramado. O cachorro, conhecido por sua velocidade e agressividade, queria tirar a bola de Kerolin, e o desafio dela era mantê-la nos pés. Um treino e tanto para a garotinha que precisava ser mais ágil do que seu adversário – simplesmente um pitbull. Se nem ele conseguia tirar a bola dos pés dela, imagina como sofrem as suas marcadoras hoje em dia.
A vida da família em Campinas era bem simples. A mãe era empregada doméstica e se desdobrava para conseguir sustentar os filhos. Kerolin hoje tem como meta retribuir o esforço que ela fez por eles: “Ela vem em primeiro lugar na minha vida, quero fazer por ela tudo o que ela fez por mim.”
Um dos momentos mais difíceis que elas viveram juntas foi quando, aos 11 anos, Kerolin teve um problema na perna que quase a afastou de vez do sonho de jogar futebol. Foram alguns diagnósticos errados, muitos dias internada e o risco de ter tido até mesmo que amputar a perna. A menina teve osteomelite, uma infecção/inflamação no osso, causada por uma bactéria ou fungo. Por conta da demora em identificar o problema (ela passou por vários médicos até conseguir o diagnóstico correto), a situação foi se agravando, e a garota precisou ficar internada por um mês. “Minha mãe foi muito guerreira. Ia trabalhar de dia e passava a noite comigo. Ela não me deixou em nenhum momento”.
Quando teve alta, a orientação era para Kerolin ficar longe dos esportes de contato. Mas o bichinho do futebol já havia picado a menina, que não resistiria por muito mais tempo. Ela voltou a jogar, conheceu um time feminino que disputava competições amadoras e ali passou a efetivamente sonhar em ser uma jogadora de verdade, em ir para a seleção brasileira.
Sonho adiado
Kerolin teve suas primeiras convocações para as seleções de base e chamou a atenção de grandes clubes quando disputou o Campeonato Brasileiro feminino pela Ponte Preta em 2018. A equipe de Campinas chegou às quartas-de-final, sendo eliminada pelo time que viria a ser campeão (o Corinthians), e a atacante foi contratada pelo Palmeiras, que retomaria o investimento no futebol feminino em 2019.
Os gols e o talento que mostrava em campo foram o cartão de visitas para ela receber suas primeiras convocações na seleção principal. Quando veio a notícia do doping, Kerolin soube que estava na pré-lista da Copa do Mundo. A punição interrompeu mais um sonho – ou melhor, adiou.
Assim como no momento em que descobriu a infecção na sua perna, agora Kerolin tinha mais um forte motivo para desistir de vez do futebol. Ainda mais quando seu contrato com o Palmeiras terminou (ao final de 2019) e ela ficou sem clube, sem salário e sem perspectivas nos gramados – e em meio a uma pandemia. Faltava ainda um ano para o fim da punição.
“Eu não conseguia fazer nada. Não via luz nenhuma, só escuridão. Não estava conseguindo ajudar minha família, como sempre ajudei. A gente começou a ter muita dificuldade em casa. Tinha vezes que não tinha o que comer. Eu pedi dinheiro emprestado para pagar quando voltasse a jogar. Tive crise de ansiedade, não conseguia dormir”, contou.
A ajuda da psicóloga da seleção brasileira foi imprescindível para que ela não sucumbisse à depressão. E no fim de 2020, veio a notícia que a faria renascer. A técnica Pia Sundhage a convocou para treinos na Granja Comary. Ela ainda não podia jogar (a punição acabava em março de 2021 para jogos oficiais), mas podia treinar, e ali viu finalmente uma porta se abrir: “A oportunidade sorriu para mim novamente”.
Rumo à 1ª estrela
Ao entrar no Twitter após ter visto seu nome na lista de convocadas, Kerolin recebeu um balde de água fria. “Foi um massacre. Todo mundo criticando. E eu pensava: por que tenho que ficar passando por isso? Só sei que falei: vou pegar tudo isso e vou me transformar num monstro. Para depois o pessoal ver. Falaram? Tá aí o resultado.”
Sabendo que estaria totalmente fora de ritmo dentro de campo, Kerolin queria se dedicar ao máximo nos testes físicos para mostrar seu esforço à técnica Pia Sundhage, que sempre cobrou bastante das atletas essa questão.
No famoso “teste do ioiô”, aquele que as atletas são divididas em grupos para correr entre dois pontos (distância de cerca de 20m) com o ritmo/intensidade aumentando até elas cansarem, Kerolin ficou junto com Debinha, a atacante da seleção conhecida por sempre ter o melhor resultado nessa avaliação.
“Falei: vou sair depois da Debinha. Fiquei mentalizando isso. Eu sabia que não ia sair depois dela porque ela sempre ganha. Ela correndo e eu tentando. Aí eu saí, parei de correr, mas fui a penúltima, só antes dela. Ali tudo voltou. Eu fiz 2.400 metros, sendo que eu estava há muito tempo sem treinar. Ali eu entendi que a cabeça, quando quer, ela te leva em lugares onde você não imagina. Mentalizei e aquilo me fez muito forte”, afirmou.
Hoje, Kerolin é muito grata à Pia pela oportunidade que teve. “Acho que outro técnico não teria feito isso”. A treinadora, na época, justificou a convocação da atacante que estava fora de atividade: “Ouvi coisas muito boas sobre ela”. E agora fica claro que não há nenhum arrependimento. Kerolin é um dos grandes destaques da seleção renovada que Pia está formando. “Kerolin é única. Ela é imprevisível. Não importa se um time se defende com 5 jogadoras, ela consegue furar isso”, afirmou a treinadora.
Depois de passar a última temporada no Madrid CFF, Kerolin estreou recentemente na liga americana atuando pelo North Carolina Courage justamente ao lado de Debinha. O primeiro objetivo dela agora é retomar aquele sonho antigo/adiado de representar a seleção numa Copa do Mundo.
“Hoje eu sonho em colocar a estrela no peito e tenho sonho de estar entre as melhores do mundo. Tudo o que eu passei me fez entender o que eu tenho que fazer pra chegar lá”, disse.
Ela vê a seleção brasileira no caminho certo e pede paciência com o processo de renovação.
“A Pia está tentando encaixar as melhores opções. Questão de paciência, de tempo. Estamos no caminho certo. E todo mundo abraça a ideia. Vejo muito brilho nos olhos das meninas. E muito desejo de ganhar. Todas querem colocar essa estrela no peito.”
Se tem uma coisa que Kerolin aprendeu nessa vida é ter paciência. Sorte a nossa que ela não desistiu.