No Brasil, clubes e gestores ainda jogam contra o futebol feminino

O futebol feminino é e sempre foi mais que campo. Mais que bola, que traves, que gol. O futebol de mulheres é sobre luta, resistência, causa. Diferente do masculino, jogar bola é um ato de coragem para elas.

Muitos são os exemplos de quem faz a modalidade acontecer na base do suor, da perseverança, do sufoco. Recentemente repercutiu nas redes sociais o caso do América-RN, ou melhor, o descaso.

Na condição de idealizadora do projeto dentro do clube, Julia Medeiros fez uma denúncia no Instagram oficial da equipe em forma de desabafo. Na “carta aberta aos interessados”, a educadora física anuncia o fim da modalidade no América-RN e relata o abandono da presidência, que inclui a falta de repasse financeiro e de apoio às atletas lesionadas.

O início de um sonho

Julia, de 26 anos, iniciou no futebol feminino na gestão do Cruzeiro de Macaíba, bicampeão Potiguar. Sem perspectivas de manter o time por lá, ela decidiu levar o projeto ao América, na figura do presidente Ricardo Valério, no final de 2020.

“Nosso acordo era de que poderíamos usar a camisa do time, a estrutura (alojamento) e o uniforme da equipe Sub-19 do masculino que não estava ativada ainda, mas não teríamos apoio financeiro do clube. Iniciamos os treinamentos em janeiro de 2021 para competir o estadual, que começaria no mês seguinte. Quando fomos campeãs, fiz uma nova conversa com o presidente para montarmos um bom time que disputaria a Série A2 do BR Feminino”, explica a professora de educação física.

O América não vencia o Campeonato Potiguar desde 2012. Com a conquista deste ano (duas vitórias, um empate e uma derrota em quatro jogos), o clube se tornou o representante do Rio Grande do Norte no Campeonato Brasileiro da Série A2 de 2021.

Para que o tabu de nove anos fosse quebrado, Julia e sua comissão técnica tiraram dinheiro do próprio bolso para cobrir os custos do estadual, como alimentação e medicamentos. “Eu conheço muita gente aqui do Rio Grande do Norte, apresentei o projeto, a causa para esse pessoal, cheguei a montar uma comissão com 15 pessoas, incluindo médico, nutricionista, fisioterapeuta, preparador físico, analista de desempenho, psicólogos e todo mundo sem ganhar nada”, conta a educadora.

Créditos: @matbiston

Deu pouco certo e muito errado

Com o início do Campeonato Brasileiro Feminino A2, Julia e o presidente Ricardo Valério tiveram uma nova conversa, desta vez diferente da primeira. “Quando eu levei a proposta para o presidente sobre o time feminino, lá no final de 2020, ele se animou, inclusive comprou briga dentro do clube para dar certo, depois que os rumos mudaram”, diz Julia.

“Foi acordado que eles ajudariam com o valor de 5 mil reais para o Brasileiro, ele (Ricardo Valério) chegou a repassar 2 mil reais naquela época, mas logo em seguida, quando a CBF começou a fazer o repasse referente aos jogos, como é de praxe, eles não passaram o restante do valor e eu não cobrei, até porque a gente precisava de apenas o necessário para manter o time”, explica.

Aos clubes que participaram do Brasileiro Feminino A2 (e também os da A1), a Confederação Brasileira de Futebol pagou, por jogo, 10 mil reais na condição de mandante e 5 mil reais quando visitante. Dinheiro para ser usado com arbitragem, ambulância, médico, gandulas, maqueiros, água, gelo, entre outros. Segundo Julia, todas as despesas eram pagas por ela mesma e depois repassada ao financeiro do América-RN com nota fiscal para o reembolso.

“Começamos a treinar no final de março para o Brasileiro, competimos, trouxemos meninas de fora. Para quitar as dívidas do estadual a gente conseguiu 11 mil reais em uma rifa, que cobriu os custos de alimentação, medicamentos. Em nenhum momento o clube entrou com isso. Iniciamos o Brasileiro e lá para o quinto jogo eu já estava com uma dívida de 8 mil reais. Eu prestava conta e recebia o que gastava, então se eu gastei, por exemplo, 3 mil reais, foi repassado 3 mil”, explica a educadora.

O que não explicaram à Julia é se esses 3 mil reais de um jogo “x” vinham do dinheiro dado pela CBF aos clubes que participavam do campeonato ou se era do auxílio financeiro que a Confederação disponibilizou a clubes e Federações por conta da pandemia. No caso do América-RN, o valor dessa ajuda era de 50 mil reais para ser usado exclusivamente com o feminino.

“Da minha dívida de 8 mil reais, o presidente me repassou 4.500 reais alegando que tirou dos 50 mil reais que a CBF deu de auxílio financeiro, mas quando fizeram uma reportagem perguntando a ele sobre esse dinheiro, ele disse que havia repassado uma parte e logo em seguida me ligou, em tom ameaçador, falando que era para dar uma trégua nessa causa porque o clube estava passando por um momento difícil, tentando o acesso para a Série C, que era muito importante e que não era para eu polemizar”, aponta Julia.

“Eu realmente dei uma trégua, eu estava cansada, sabia que estava lutando contra gente grande e eu não tinha condições, estava com problemas de saúde mental”, completa.

No nacional feminino, o América não avançou da primeira fase e se despediu da competição na quarta colocação do grupo C com sete pontos, tendo duas vitórias, um empate e duas derrotas. A atacante Leticia Nunes foi a artilheira da equipe com quatro gols. Porém, o clube terminou, também, com duas atletas lesionadas.

“A gente teve o saldo de duas atletas lesionadas com joelho, eu fui ajudá-las, entrei em contato com o clube para ver como fariam com elas. Uma delas aguarda para operar pelo SUS, eu ajudei financeiramente elas com academia para fortalecimento. Ainda tenho duas parcelas do meu cartão de dívida para quitar”, afirma Julia.

O fim da parceria

Após a repercussão do caso, o América procurou Julia Medeiros. Ficou acordado o repasse do valor restante referente às dívidas de jogo, bem como assistência às duas atletas lesionadas.

“Quando houve o anúncio que a CBF repassaria os 50 mil reais aos clubes da Série A2 eu falei com o presidente novamente, se ele estava ciente de que esse valor seria repassado e ele me pediu para ter muito cuidado com o que fosse gasto, para eu economizar ao máximo para que a gente pudesse continuar com futuros projetos e o time, e assim foi feito. Ele queria fazer um caixa para os próximos campeonatos e eu falei: ‘Presidente, tudo bem, mas vamos precisar repassar uma parte para as atletas’, esse assunto morreu naquela época”, conta Julia.

“Eu nunca tive o objetivo de tocar no dinheiro para mim. Tinha dias que não tinha mistura para as jogadoras, só arroz e feijão. Dois meses atrás eu mostrei uma planilha para o presidente com o valor de 12 mil reais de ajuda de custa para as atletas, o que dava 400 reais para cada. Quando ele entrou em contato comigo agora para quitar as dívidas, ele alegou que não iria fazer esse repasse porque os 50 mil chegaram após o fim do campeonato e não teria como justificar no jurídico”, explica Julia.

Na conversa também foi abordado a continuação do projeto, convite negado por Julia. “Ele disse que os 50 mil estão disponíveis em conta para ser aplicado ao futebol feminino. Ele solicitou que eu apresentasse um projeto para 2022 e eu falei que não tinha interesse. Ele falou que achava precipitado da minha parte largar o futebol, mas eu não tenho mais como lutar por isso por causa desses problemas, esses detalhes que tiram a nossa paz e a sanidade mental”, desabafa a educadora.

O que diz o América-RN – e a CBF

Tentamos contato com o clube através da sua assessoria de imprensa, que nos encaminhou o contato do presidente e disse não saber informações sobre a equipe feminina. Ricardo Valério não atendou nossas ligações, nem respondeu nossas mensagens.

A Confederação Brasileira de Futebol disse que: “O dinheiro (50 mil reais) foi devidamente enviado a todos os clubes e ressaltado em nota que o destino foi para repasse das despesas do futebol feminino. No entanto, a CBF não tem gerência do uso do dinheiro pelo clube”.

Estamos a dois meses do final do ano, época de balanços, de ver o que deu certo, o que deu errado. No futebol de mulheres, 2021 foi um ano espetacular pelo crescimento, audiência, valorização do produto. Mas, o caso do América-RN não é isolado e ainda há muito o que se fazer para que a bola role de forma digna Brasil afora para elas. Não podemos mais permitir que outras Julias percam a vontade de fazer dar certo porque gestores e clubes querem que dê errado.

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