Simone de Beauvoir afirmou, no século XX: “basta uma crise política, econômica ou religiosa para que os direitos das mulheres sejam questionados. A vigilância deve ser constante.” E ela estava certa.
Nos últimos dias, o mundo todo está acompanhando a situação catastrófica que o Afeganistão enfrenta após a retirada das tropas americanas de seu território. O regime Talibã retomou o controle do país pela força após 20 anos fora do poder. O grupo tomou a capital do país, Cabul, enquanto a população se sente amedrontada e as outras nações lutam para evacuar suas embaixadas e resgatar alguns colaboradores.
As mulheres afegãs estão desesperadas com a possibilidade do regime Talibã voltar a agir com violência e sanções àquelas que ignorarem suas ordens. Assim que tomou o poder novamente, o Talibã tentou mostrar que agiria de maneira diferente do passado. O grupo alegou estar disposto a honrar os acordos feitos com o governo dos Estado Unidos e que pretendem ser um governo inclusivo e disposto a manter alguns direitos para as mulheres.
No passado, entre 1996 e 2001, meninas e mulheres sentiram na pele as marcas desse regime terrorista. Elas foram proibidas de ir à escola e trabalhar, eram obrigadas a se cobrir com longas burcas, proibidas de viajar sem a companhia de um homem, eram apedrejadas até a morte se cometessem adultério e mulheres jornalistas foram impedidas de aparecem na TV. Além disso, as adolescentes eram entregues aos militantes para casamentos ou estupros.
Diante de tanto medo, as mulheres que fazem parte do cenário esportivo do país também relataram preocupação e buscam ajuda. Uma delas é Khalida Popal, de 34 anos, uma das pioneiras no esporte praticado por mulheres em seu país, sendo, também, uma das primeiras a chegar à seleção afegã feminina, onde foi capitã por muitos anos.
“Tenho encorajado outras jogadoras a suspender suas contas nas redes sociais, apagar fotos, fugir e se esconder. Isso parte meu coração, porque em todos esses anos trabalhamos para aumentar a visibilidade das mulheres. Agora, estou dizendo às minhas garotas no Afeganistão para que se calem e desapareçam. Suas vidas estão em perigo”, declarou Khalida Popal, em entrevista à Associated Press.
Além dela, Shabnam Mobarez, atual capitã seleção afegã de futebol feminino, pediu apoio à Fifa para salvar jogadoras do regime talibã. Pela rede social, ela escreveu que a Federação Internacional de Futebol deveria atuar para retirar as jogadoras que ainda vivem no país. “Precisamos agir para salvar minhas colegas de time. Elas são minhas irmãs.”, declarou Shabnam.
“ are you okay”
My teammate in Afghanistan “No I am not – I know they will come for me soon, can you help me?” @FIFAcom how should I answer the question? We must act to save my teammates. They are my sisters?— Shabnam Mobarez (@shabnammobarez) August 19, 2021
Shabnam Mobarez tem 26 anos e está nos Estados Unidos, mas mantém contato diariamente com jogadoras que estão no Afeganistão, escondidas, fora das suas casas e “sem poderem confiar em ninguém”. Ao jornal português, Tribuna Expresso, ela relatou que nem a federação de futebol do país as tem ajudado.
“Tenho falado com algumas jogadoras e todas estão escondidas, mas não em suas casas. Parece que os talibãs já sabiam seus endereços, não sei como. Estão escondidas em casa de familiares ou amigos, sem revelarem a sua identidade. Até os membros e o staff da Federação de Futebol do Afeganistão simplesmente desapareceram, era ideal as protegerem, mas não há ninguém. Parece que as pessoas que tinham dinheiro foram embora e agora temos todas estas mulheres desamparadas, deixadas à sua sorte.”
Quem é Khalida Popal, a revolucionária do futebol feminino afegão
Filha de uma professora de Educação Física, ela se apaixonou pelo esporte ainda na infância. “Comecei a jogar futebol simplesmente porque era divertido. Mas pouco depois se tornou bem mais sério que isso. Diziam que não era bom para mim jogar futebol e que isso me desonrava”, revelou a jogadora em 2018, durante uma entrevista ao jornal The Independent.
Em 1996, ela deixou Cabul pela primeira vez, com nove anos de idade. Sua família fugiu da cidade quando o Talibã tomou a capital, e Khalida passou grande parte de sua adolescência num campo de refugiados no Paquistão. Ela e sua família só retornaram ao seu país após a invasão americana, em 2001.
De volta ao Afeganistão, Khalida passou a encorajar mulheres a praticar futebol e, junto delas, enfrentou todo tipo de preconceito, agressões físicas e verbais dos extremistas que as julgavam como prostitutas por jogarem futebol. Até mesmo as mulheres que gostavam do esporte tinham medo de praticar com receio de represálias até mesmo por parte de seus familiares.
“Algumas vezes eu ainda tenho pesadelos. Esses homens estão olhando e rindo para mim ou há um medo de que eles vão me estuprar. Meu problema não era só o Talibã com a arma, mas também o Talibã de terno e gravata. Pessoas com a mentalidade do Talibã que eram contra as mulheres e a voz delas”, revelou ao The Guardian, em 2017.
Foram muitas as batalhas que Khalida precisou enfrentar. Em algumas delas, se tornou vitoriosa, como criar uma equipe afegã formada por estudantes para disputar competições internacionais (com o apoio da federação local e do comitê olímpico, mas os treinos acabavam realizados dentro de uma base da OTAN para evitar ataques) e também se tornar capitã da seleção feminina em sua primeira partida oficial.
E, por conta de toda sua liderança e comprometimento com a evolução do futebol feminino no país, ela era ameaçada constantemente. Foi aí que decidiu sair do Afeganistão, contando qual seria seu paradeiro apenas aos familiares. Ela passou pelo Paquistão, Índia e Noruega até chegar à Dinamarca, onde conseguiu um visto permanente e mora desde 2016. Khalida abandonou o futebol, atuou em um cargo diretivo na federação e se formou em Gestão e Marketing numa universidade dinamarquesa.
E foi lá na Dinamarca que Khalida criou a organização Girl Power para levar o futebol feminino em centros para refugiados. A Girl Power reúne mulheres de diferentes origens para praticar esportes (o futebol sendo o principal deles) e se integrar na comunidade, reconstruindo suas vidas no novo país.
E, por conta de sua iniciativa, ex-atleta trabalhou em cooperação com a Uefa e com a Fifa, além de se tornar embaixadora da Copa do Mundo para Crianças de Rua, uma fundação que tenta promover um ambiente seguro a essas crianças em todo o mundo.
Outra atuação marcante aconteceu juntamente com a Hummel (patrocinadora esportiva das seleções afegãs), quando Khalida auxiliou no desenvolvimento de um uniforme feminino que também tivesse o hijab (véu usado por mulheres muçulmanas), num tecido mais leve para facilitar a prática esportiva.
E mesmo longe do Afeganistão, a antiga capitã mantinha contato com suas companheiras, até a ascensão do Talibã colocar em xeque o futuro do futebol feminino e das mulheres afegãs como um todo, diante dos sinais imediatos de repressão.
“Don’t forget the women of Afghanistan, they have done nothing wrong and they should not be forgotten like this.”
Former Afghan football captain @khalida_popal tells CNN Sport’s @AmandaDCNN what it’s like watching her country fall to the Taliban.
https://t.co/FP6XuQvggx pic.twitter.com/BdyeQ9RKpb
— CNN Sports (@cnnsport) August 20, 2021
Com a ascensão do Talibã, mesmo muito ativa e resistente, Khalida lamenta o que acontece no Afeganistão e se sente incapaz de ajudar as dezenas de companheiras que a pedem socorro. Diante da situação, ela aconselha que as garotas apoiadas por seus programas fujam de suas casas e se escondam.
“Eles continuam gravando vídeos e fotos da janela mostrando que estão do lado de fora de casa e isso é muito triste. As mulheres perderam a esperança”, declarou.
Até mesmo a participação dos atletas afegãos nos Jogos Patalímpicos de Tóquio foi suspensa. A porta-voz do Comitê Paralímpico Internacional (CPI), Craig Spence, disse que “devido à situação muito grave do país, todos os aeroportos estão fechados e será impossível viajar a Tóquio”.
Por isso, a atleta do taekwondo, Zakia Khudadadi, deixou de fazer história. Aos 23 anos, ela seria a primeira mulher a representar o país nos Jogos Paralímpicos.
Em vídeo gravado para a agência Reuters, Khudadadi fez um apelo: “Peço a todos vocês, desde as mulheres ao redor do mundo, instituições de proteção à mulher, de todas as organizações governamentais, que não deixem que os direitos de uma cidadã do Afeganistão no movimento paralímpico sejam retirados tão facilmente.”
Nós também desejamos que toda mulher, seja de qual nação for, tenha seus direitos respeitados, mas diante de tanto retrocesso no mundo, parece que essa luta nunca terá fim.