“Eu fui uma máquina pra fazer filha mulher”, declarou Sergipe, ex-atleta e treinador de boxe que foi tricampeão baiano e duas vezes campeão brasileiro profissional, uma no peso galo, em 1999, e outra no peso super galo, em 2002.
Esse campeão é pai de três garotas e a mais velha delas é Beatriz Ferreira, atual campeã Pan-Americana e Mundial de boxe. “Eu era doido pra ter filho homem pra seguir minha carreira. Sempre tive essa vontade, mas aí já tomei 2×0, nasceu Bia e depois nasceu Samira e aí eu pensei: pô, com a situação que tá, não dá pra eu ficar tentando. Mas graças a Deus nasceu essa menina que é a Bia, que é pior do que homem”, brincou Sergipe que também é pai de Maria Antonia.
Bia tem 28 anos e desde muito pequena acompanha o pai em treinos e lutas. Ele foi a maior referência que a garota teve dentro do ringue e, com quatro anos de idade, ela já seguia, literalmente, o mesmo caminho de Sergipe. E deu tão certo que Bia agora terá a chance de disputar um ouro olímpico na categoria até 60kg do boxe feminino nos Jogos Olímpicos de Tóquio.
“Me lembro como hoje, eu estava lutando direto (nos campeonatos) Boxe Brasil, Verão Vivo, e chamava a atenção toda do bairro. Eu sempre me destacava nas competições, os meninos da rua assistiam e, quando eu tirava o carro da garagem pra ir treinar, Bia já ia correndo pra ‘bater saco’, pegar uns pesinhos. Ela descia uma ladeira e ia pra academia. Eu falava ‘vai pra casa, menina’ e ela não ia. Ela se olhava no espelho, fazia a guarda toda torta e ficava pra lá e pra cá imitando os golpes. Ela só ia embora quando eu acabava o treino”, relembrou.
O início do pai
A trajetória de Sergipe na modalidade começa de maneira despretensiosa em Salvador. Foi observando um vizinho que treinava boxe (mas não competia) que Sergipe começou a pegar gosto pela luta. “A gente treinava socando saco de açúcar e o Silva (vizinho) cortava a boca da calça jeans, colocava espuma dentro e costurava. Essa era nossa luva.”
Foi participando de uma seletiva na capital baiana que Sergipe foi descoberto. Ele “derrubou” um, dois, três e foi convidado a participar de um campeonato para iniciantes. Dali em diante, o boxe entrou pra valer em sua vida, mas a realidade que ele viveu foi bem diferente do que Bia vive hoje em dia.
“Eu falo pra minha filha, ela viu o meu sofrimento quando eu lutava, não tinha nem tênis pra correr e hoje ela tem tudo. Não pode reclamar de barriga cheia, não.”
Sergipe tem 52 anos anos e encerrou a carreira aos 38 anos. Subiu 45 vezes no ringue, vencendo 42 lutas e perdendo apenas três. Treinou na mesma academia que Popó (campeão mundial de boxe em 99) e acabou fazendo parte da equipe do campeão baiano e se tornou sparring dele. Foi somente nessa época que começou a ganhar dinheiro trabalhando com boxe. E Bia, claro, sempre ali perto, acompanhando o trabalho do pai.
A emoção da Bia Ferreira é a nossa.
— Dibradoras (@dibradoras) August 5, 2021
Porque mulheres já foram proibidas por lei de praticar essa modalidade por 40 anos no Brasil.
Porque os Jogos Olímpicos só aceitaram mulheres no boxe em 2012.
E ela vai buscar a medalha de ouro.
LUTE COMO UMA GAROTA, LUTE COMO BIA FERREIRA! pic.twitter.com/S8ylVulmlW
Vendo que a garota tinha talento e se interessava pelo boxe, o pai pensou: “vou investir nessa menina e treinar ela”. Dito e feito. “Comecei a levar ela pra academia onde eu treinava para ela ficar vendo os meninos e o Popó. E ficar lá a empolgava mais. E eu falava ‘olha como Bia tá ficando’, e ela ia batendo na manopla e todo mundo ficava admirado. E nessa época, a Adriana (Araújo, medalhista de bronze nos Jogos Olímpicos de Londres-2012) e a Erika (bicampeã brasileira e Pan-Americana de boxe) também treinavam lá e ela ficava vendo a luta delas também.”
Juntos pelo boxe
Há 15 anos, Sergipe recebeu uma proposta de emprego em Juiz de Fora e se mudou para lá. Ele e a mãe de Bia se separaram e a filha mais velha quis morar com o pai e se dedicar ao que mais amava. E foi ao lado do pai-atleta-treinador que Bia começou a se desenvolver no esporte.
E juntos, eles foram evoluindo e enfrentando muitos desafios, como a falta de campeonatos para que Bia pudesse lutar e uma suspensão inesperada que por dois anos deixou a lutadora longe dos ringues. Bia acabou praticando muay thai em uma academia e chegou a fazer uma luta nessa categoria, mas a Associação Internacional de Boxe Amador (AIBA) proibia que uma atleta lutasse em duas modalidades diferentes.
“Bia tem muito tempo de treino, mas não tem de competição. Bia começou a lutar quando foi pra seleção. Comecei a arranjar umas lutinhas pra ela aqui, mas ninguém queria lutar com ela. Foi aí que ela começou a participar de campeonatos de muay thai porque não tinha evento de boxe e a descobriram”, contou Sergipe.
A suspensão em 2014 foi um baque, mas o pai não deixou a filha desanimar. Mesmo sem competir oficialmente, o pai seguiu treinando a filha e, depois de passado o tempo de punição, Bia foi convidada pela Confederação Brasileira de Boxe (CBBoxe) para ajudar nos treinamentos de Adriana Araújo durante a Rio-2016 . Na sequência, ela participou do projeto de Vivência Olímpica e passou a fazer parte dos treinamentos da seleção brasileira.
De 2016 pra cá, Bia só evoluiu. Em 26 torneios disputados, ela conseguiu 25 pódios. Suas conquistas mais recentes são: Campeã sul-americana em Cochabamba (2018), Campeã Pan-americana em Lima (2019) e campeã Mundial em Ulan-Ude na Rússia, também em 2019. O Brasil não ganhava uma medalha em Mundial desde 2010, quando Roseli Feitosa (81kg) havia vencido.
Novos vôos de Bia Ferreira
Depois de incentivar e lapidar o talento da filha, hoje Sergipe acompanha de longe o crescimento de Bia, que agora tem toda uma equipe que a acompanha e prepara sua rotina de treinos na seleção brasileira.
“Bia tem um boxe fora do normal. Não é porque é minha filha ou porque treinou comigo ou porque eu que fiz, mas Bia sempre foi talento. Agora ela está na seleção, com estrutura e com tudo e ela nunca tinha tido. Essa experiência de ter todo esse suporte a desenvolveu muito. Ela começou a competir, viajar o mundo inteiro e pronto”, declarou Sergipe.
O pai se orgulha demais das conquistas da filha, mas é claro que sente falta de estar por perto para acompanhar a conquista mais importante da boxeadora. “Quando estou (nos campeonatos), a Bia fica mais guerreira ainda. Ela fica mais segura. Não é que ela não tenha confiança nos treinadores, eles são excelentes, caras sinistros mesmo. Mas é aquilo, é o pai dela que está ali do lado. Ela fica mais forte. Eu percebo e ela também fala isso.”
Sergipe afirma que a filha tem sangue no olho e que se percebe em muitos trejeitos de Bia quando a vê lutando. “Quando entra no ringue ela se transforma. Muitas pessoas acham que somos muito parecidos e eu também. Quem vê a Bia lutando, fala que sou eu. Bia é uma atleta que tem mão, que pega, briga bem, uma atleta completa. E tem muita disposição como eu tinha, com garra, determinação e vontade de vencer”.
Bia Ferreira já fez história nos Jogos Olímpicos de Tóquio tornando-se a primeira mulher brasileira a chegar a uma final olímpica. Ela agora vai em busca da “Mãe de Todas”, a medalha de ouro. A luta será contra a irlandesa Kellie Harrington, campeã mundial em 2018 na madrugada deste domingo, dia dos pais, às 2h.