Pronta para ‘quebrar paradigmas’, Ana Marcela planejou cada braçada para o ouro

Esse foi o quarto ciclo olímpico vivido pela nadadora Ana Marcela Cunha. Aos 16 anos, ela estreou na maratona aquática competindo em Pequim-2008 e ficando na 5ª colocação. Uma estreia animadora, mas que acabou frustrando a atleta nos dois Jogos Olímpicos seguintes: em Londres-2012 ela não conseguiu se classificar e em casa, na Rio-2016, ela ficou em 10º lugar.

O que mudou de lá pra cá? A cabeça, é claro, os treinamentos e o resultado. Após concluir a prova de 10km em primeiro lugar, com o tempo de 1h e 59 minutos, a atleta ouviu o treinador dizer que seu desempenho havia sido perfeito. “Hoje era o dia! E se o Fernando falou que estava perfeito, quem sou eu pra discordar”, declarou em entrevista coletiva na base do Time Brasil, em Tóquio.

“Entrei na minha primeira Vila Olímpica com 16 anos, não tinha noção nenhuma. No dia em que cheguei na Vila em 2008, o (César) Cielo foi campeão, encontrei o Michael Phelps e o Kobe Bryant. Eu estava em um parque de diversões. Hoje eu chego aqui como uma pessoa que ama as redes sociais e deixou isso de lado, sou uma pessoa que gosta de falar, dar entrevista e também deixei de lado por um sonho. E isso valeu a pena! Estava muito mais madura e consciente do que precisava fazer”, revelou a maratonista campeã.

ANA MARCELA É OURO: ‘DEIXEI ESCAPAR ALGUMAS VEZES, HOJE SOU CAMPEÃ OLÍMPICA’

Se Ana Marcela já viveu o clima olímpico em três situações, essa foi a primeira vez que seu treinador, Fernando Possenti, esteve em uma competição como essa. A parceria entre os dois é antiga, começou em 2013 mas terminou dois anos depois quando ela deixou o Sesi – equipe comandada na época por Possenti – para retornar à Unisanta.

Novamente juntos e direto para o pódio, o treinador comemorou a conquista da nadadora baiana. “Teve um gostinho especial. Pra ela, é a terceira edição de Jogos Olímpicos, pra mim é o primeiro. E nada como estrear com o pé direito”, disse.

Medalhista de ouro hidratada

E claro, para subir ao degrau mais alto do pódio, foi preciso muita dedicação não só da atleta, mas também do treinador que aliou o cuidado com a performance da atleta, a estratégia para a prova e também com a temperatura do mar em que Ana iria competir.

(Jonne Roriz/COB)

“Antes mesmo da pandemia, já estávamos buscando locais onde tivesse uma água quente para simular a do Japão. A gente sabia que iria estar muito quente e a preparação foi expor ela a situações mais parecidas possíveis (com a do Japão). Tivemos até uma convenção no COB onde eles trouxeram especialistas para falar de competição no calor e vários cientistas discutiram maneiras para se adaptar. E assim, foi preciso se expor ao extremo para se adaptar ao extremo, não havia outra maneira”, contou Possenti

“O ponto central da nossa preparação e estudo foi evitar a desidratação. Tivemos uma participação gigantesca do médico do COB, o Rodrigo Sasson, que me ajudou a calcular exatamente quanto ela ia precisar de sal, citrato, sódio, para reter um pouco mais dessa água e não desidratar. A gente fez o cálculo pela temperatura média da água, pelo peso do corpo dela e pelo quanto ela tem de sudorese. Foi bem minucioso e ela conseguiu terminar a prova hidratada, numa água dessa temperatura e depois de duas horas”, concluiu.

(Jonne Roriz/COB)

Ana Marcela comprova na sequência, em palavras, que a metodologia implantada pelo treinador deu resultado. “Me preparei muito, como nunca, pra essa prova. A gente sabia do calor que iríamos enfrentar. Todo mundo sabe que eu nado muito bem na água fria, mas a gente se adaptou muito pra essa água quente, pro sol e pro clima mais úmido. Na estratégia, o Fernando me disse que geralmente a gente está acostumado nos campeonatos mundiais a ter 70 meninas nadando em um pelotão muito mais aberto, que a gente chega faz uma linha de 4 ou 5, mas aqui eram 25 meninas. Um pelotão reduzido e não ia acontecer de ficar um grupo grande em paralelo e que a prova seria muito mais aberta. E foi isso que aconteceu e como já havíamos pensado nisso, eu nadei 95% da prova entre as 2, 3 primeiras colocadas.”

Ao término da prova, nem parecia que Ana Marcela havia nadado por duas horas. E isso comprova que a estratégia adotada foi bem sucedida. “Outro ponto foi conseguir nadar o máximo possível com estilo mais tranquilo, alongado, com menos braçadas e foi muito importante. O desgaste é menor e eu cheguei no final da prova um pouco mais inteira, fazendo um sprint final com tudo que a gente treinou no momento em que eu precisava. Foi algo que economizou muito minha energia durante a prova e que fiz nos treinamentos”, declarou.

O abraço que quebrou o protocolo

“Só quem convive com a Ana Marcela é que sabe que ela não é uma pessoa de abraço, de toque. O abraço pra Ana é quase uma recompensa, precisa acontecer algo muito legal pra ter um abraço.” E aconteceu! Quando a nadadora deixou a prova com a certeza da conquista da medalha de ouro, o abraço entre os dois foi muito marcante, forte e genuíno.

(Jonne Roriz/COB)

“Se você olhar etapas de Copa do Mundo, a gente dá um toque, mas não tem um abraço. E o abraço simboliza uma conquista que foi muito especial, por isso rolou um abraço daquele, que emociona. Ele reflete o ‘nossa, a gente queria tanto isso e conseguiu’. Tem uma simbologia por trás.” revelou o treinador que desceu a rampa e já olhou para Ana Marcela dizendo “hoje tem abraço”.

Nessa parceria de anos entre Possenti e Ana Marcela tem muita união (até mesmo familiar), respeito e amizade. E o técnico valoriza as principais características que fazem Ana Marcela ser uma atleta disposta a quebrar paradigmas, como ele mesmo definiu.

“Ela tem características interessantes que poderia ser exemplo pra outros atletas. A primeira delas é: ela ouve. Na idade que ela tem e com o número de títulos que tem, ela não é uma atleta que sabe tudo. Ela sempre está disposta a ouvir, não só a mim, mas ouvir outras pessoas que podem trazer coisas novas e que vão agregar ao repertório dela. Ela é aberta a ouvir e disposta a coisas novas. O planejamento muda e ela se sente desafiada a fazer coisas novas e isso é bacana”, afirmou.

“O que falta em muito atleta, ela é muito disposta a quebrar paradigmas. Se tiver que treinar mais, ela vai treinar mais. Se tiver que deixar de sair por 6 meses, ela vai deixar de sair por 6 meses”, concluiu Possenti.

(Jonne Roriz/COB)

E é mais ou menos isso que vai acontecer com a campeã olímpica em breve. Ela irá descansar por 10 dias – que segundo o treinador ‘é bastante tempo’ e depois já vai se preparar para o próximo desafio. “Em setembro tem competição. Tem etapa de Copa do Mundo e ela não vai querer nadar mal, certo? Então é isso.”

Para aplicar o treino em Ana Marcela e escolher a estratégica para as provas, Possenti precisa estudar muito. O segredo, segundo ele é não seguir sempre o mesmo tipo de treino.

“Muita gente fala que em time que está ganhando não se mexe, mas em maratona aquática isso não funciona. Se você fizer sempre a mesma coisa, vai ter sempre o mesmo resultado, dentro da mesma estratégia. A gente nunca repetiu um ciclo, e quando eu falo ciclo, é anual. Nunca um ano de treinamento da Ana Marcela foi igual ao outro. Nunca uma altitude foi feita na mesma época, nunca um treinamento foi igual. Ela tem que se reinventar em termos de estratégia o tempo inteiro, senão ela fica manjada. E isso não pode acontecer. E como eu monto o treino para montar a estratégia? Isso é baseado em quem serão as adversárias dela.”

E Possenti revelou ter uma adversária especial que merece atenção: a americana Erika Sullivan que foi medalhista de prata nesta edição, nos 1.500m, atrás apenas de Katie Ledecky. “Ela tem um técnico que adora a maratona aquática e vai botar ela pra nadar. Ele já colocou ela na maratona em outras situações, ela é extremamente veloz e se a gente não mudar nossa estratégia, essa menina vai dar trabalho”, revelou.

(Jonne Roriz/COB)

Sobre os planos futuros, a dupla tem o mesmo objetivo: conquistar o Mundial de 10km na maratona aquática, a prova que ainda falta para Ana Marcela vencer. “A medalha olímpica é a maior de todas, ainda tá caindo a ficha, mas ainda quero ser campeã mundial na prova dos 10km”, revelou a atleta.

Ter mais consciência do que coração foi o que Ana Marcela também declarou ter sido determinante para seu sucesso em Tóquio-2020. Mas, depois da chegada em primeiro lugar, o abraço entre Possenti e a nadadora deixou claro que, na hora certa, o coração apareceu e também foi importante.

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