Carta para Cristiane, Marta e Formiga

Eu nunca quis ser jogadora de futebol. Nunca soube chutar uma bola, nunca consegui correr sem me desequilibrar, nunca tive fôlego ou coordenação motora. Nunca aprendi que eu podia.

Mas aprendi a lutar, desde sempre. Mulher, pobre e preta no Brasil nasce chorando porque sabe que não vai ter um segundo em que a trajetória não seja resumida a luta e resistência. Nunca foi fácil né? Mas um dia talvez seja menos difícil.

Eu sempre amei o futebol, sempre me fascinou o balé feito em volta da bola. E sempre defendi o que eu acredito, porque sei que a gente tem que dar a cara a tapa, mas também tem que saber a hora de levantar a mão.

Vi, por diversas e diversas vezes, vocês oferecerem o próprio rosto, de graça, por migalhas, por sonhos que vocês soubessem que talvez só se realizariam pelos pés de outras. Dentre todas as derrotas, as maiores sempre vieram de dentro, de quem deveria proteger e não tratar o futebol como um bibelô para competições temporárias.

As maiores vitórias que eu vi não trouxeram a medalha de ouro, troféus e voltas olímpicas. Trouxeram novas atletas, que, inspiradas por vocês, passaram a fazer história, uma história escrita não pelas mãos, mas pelos pés de vocês.

Como já disse, quem muito apanha também aprende a bater. E bater em quem é mais forte tem seu preço. Ainda assim, vi vocês se levantando contra diversas injustiças, mesmo sem ver chance de mudança por perto.

Meu primeiro contato real com o futebol feminino foi em 2016, quando às vésperas de uma Olímpiada pude ver a beira do precipício onde o esporte estava jogado. Se eu pudesse citar um divisor de águas na minha vida, seria esse, que não representou uma grande e imediata mudança, mas que fez com que eu me questionasse o porquê ninguém fazia nada diante daquele absurdo.

A resposta veio pouco depois, quando junto de Fran, Andreia Rosa, Maurine e Rosana, Cristiane anunciou a aposentadoria. Talvez, fora dos campos, fosse ouvida, já que por mais que fizesse dentro dele, homens brancos e engravatados eram os donos do sim e do não. Formiga, que nem em campo estava mais, apoiou. Ser mulher no futebol é ser incrível. Abrir mão da maior glória de uma atleta para que outras fossem ouvidas e pudessem ter um caminho melhor, fez de vocês heroínas.

Foto: CBF

Ali, eu entendi que não basta falar, é preciso que sua voz chegue a quem precisa ouvir. Que se Marcos Aurélios se preocupam mais com a modelagem do uniforme do que com o esporte, outras pessoas talvez se somassem a voz de vocês e fizessem com que o barulho motivasse a ação.

Eu fiz jornalismo pensando em dar voz a quem não consegue se fazer ouvir. Queria escrever, falar, contar histórias. Fiz jornalismo por um motivo, e vocês me deram a razão. Se o futebol feminino era um abismo, então eu mergulharia nele, faria o que fosse possível para que a voz de vocês ecoasse.

Se dentro de campo não é fácil, fora também não foi. Muitas vezes, assim como vocês, trabalhei de graça, paguei pra trabalhar, em condições inadequadas, passando pelos mais diversos constrangimentos. Mas se essa era a cruz que o futebol feminino impunha, essa cruz não era mais de vocês, era nossa e continua sendo.

Foto: CBF

Marta, a maior do mundo. Você sempre foi o meu calcanhar de Aquiles. Gigante em campo e uma interrogação fora dele. A voz mais potente, que se calava quando todos queriam, precisavam te ouvir.

Eu já te critiquei tanto, mas tanto. Não que você tivesse obrigação de me agradar. Mas se a luta era nossa, por que não lutar? Na última Copa, você atacou. Em campo e fora dele. Fala certa, alvo errado. Ali você foi a Marta que  a Marta precisava ser. Nessas Olímpiadas, você foi a Marta que o Brasil precisava que você fosse, que todos precisavam, que por mais incômodas que fossem suas verdades, gostando ou não, eram apenas a verdade. Ali, eu, que tanto duvidei, me curvei em reverencia. Deus salve a Rainha!

É triste olhar pro campo e saber que vocês não estarão mais lá. É triste ver que toda história tem seu fim, por mais bonita que essa história seja. Não estou preparada para esse fim, talvez eu nunca esteja. Mesmo sabendo que é o começo de uma nova história.

Dói saber que assim como tantas outras vocês não vão colher os frutos vindos da terra que vocês capinaram com os próprios pés. Qualquer coisa que se diga é pouco, gratidão ainda não chega aos pés de qualquer sentimento que possa atravessar quem sabe quem são vocês. Mas ainda assim, muito obrigado, a glória é de vocês e a honra é toda minha.

Como disse, mulher preta e pobre nasce lutando, e se o caminho da minha luta foi trilhado por vocês, fica aqui a minha promessa de lutar até o fim.

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