Contra tudo e contra todos: como foi a 1ª Olimpíada do futebol feminino

Foi preciso esperar exatamente 100 anos desde a primeira edição dos Jogos Olímpicos da Era Moderna para que as mulheres conquistassem a chance de jogar futebol em uma Olimpíada. Em 1996, quando a competição aconteceu nos Estados Unidos (não por acaso, o “país do futebol feminino”), as mulheres puderam, pela primeira vez, entrar em campo e disputar uma medalha.

Isso aconteceu 88 anos depois dos homens terem tido essa oportunidade, nos Jogos de Londres, em 1908. A espera foi longa, mas valeu a pena. O futebol feminino estreou nos Jogos Olímpicos de Atlanta, e a seleção brasileira fez bonito lá, conquistando o quarto lugar.

Mas o caminho até esse honrado “quase-pódio” foi muito mais tortuoso do que pode parecer. Considerando que o Brasil daquela época (e de até pouco tempo atrás) não investia absolutamente nada no futebol feminino, o que aquela seleção brasileira conseguiu nos Estados Unidos foi muito mais do que qualquer cartola da época esperava. E o feito delas também deixou um legado para as gerações seguintes.

Já que estamos prestes a escrever um novo capítulo dessa história, nos Jogos de Tóquio, vamos relembrar aqui como ela começou a ser escrita, há 25 anos.

Foto: Acervo Pessoal

Deus salve a Rainha

Se a seleção feminina hoje pode dizer que participou de todas as edições olímpicas da história, nesta primeira ela deve isso à Inglaterra.

Quando a modalidade estreou nos Jogos, o critério para se classificar era a posição do país no último Mundial. Como eram só oito participantes à época, os oito primeiros colocados da Copa do Mundo de 1995 tinham vaga garantida. Mas o Brasil ficou em nono naquela edição.

Foto: Acervo Pessoal

A sorte foi que a Inglaterra, que ficou em sétimo na Copa, não pôde utilizar sua vaga por disputar o Jogos Olímpicos como Reino Unido. Assim, as brasileiras ganharam a chance de disputar a primeira edição olímpica do futebol para as mulheres – e não decepcionaram, diga-se.

Preparação

Até aquele momento, o futebol feminino era completamente ignorado pela CBF, que não organizava competições e pouco fazia pela seleção feminina. Muitas das jogadoras tinham outros empregos para conseguirem se sustentar ou jogavam em times de futsal – que, na época, era uma modalidade mais desenvolvida para as mulheres.

Ricardo Teixeira, então presidente da CBF, posa ao lado da seleção feminina depois do sucesso delas em Atlanta (Foto: Acervo Pessoal)

O Brasil passou a ter uma “seleção feminina” a partir de 1988, com o Mundial experimental na China, mas sem atrair muita atenção da CBF. No entanto, para a Olimpíada de 1996, a Sport Promotion, empresa parceira da confederação, decidiu financiar os custos da equipe feminina, com um planejamento mais elaborado para a competição.

O grande acerto foi ter colocado à frente do projeto Romeu Castro. O então presidente do Saad, um dos clubes mais vencedores no futebol feminino na década de 1990, tinha conhecimento da modalidade e planejou a preparação da seleção com amistosos no Brasil e também com um período de treinos e jogos de um mês nos Estados Unidos antes da estreia.

Para o comando técnico, ele trouxe o seu Zé Duarte, treinador conhecido do futebol masculino com passagens por Ponte Preta, Guarani, Internacional, Fluminense, entre outros.

Além do conhecimento tático, seu Zé trouxe para aquele time algo que elas tinham perdido depois do Mundial de 1995. Naquela Copa, o Brasil não passou da primeira fase e tomou a maior goleada de sua história no torneio.

“Seu Zé Duarte desenvolveu muito a nossa parte mental, fazia com que nós acreditássemos em nós mesmas. Nenhum outro técnico tinha chegado para gente dizendo que a gente era capaz. Os outros falavam muito da parte técnica, física. Ele trabalhava, além disso, a parte mental e colocava na nossa cabeça que nós podíamos, que nós éramos competentes, tínhamos capacidade de fazer”, contou às Dibradoras a ex-jogadora Márcia Tafarel, que fez parte daquela seleção.

Grupo da Morte

Ninguém acreditava naquelas mulheres. A lei da proibição do futebol feminino já havia sido extinta em 1979, mas isso era a teoria. Na prática, aquele mesmo decreto vigorava em silêncio. As mulheres até podiam jogar futebol, mas não tinha clube, não tinha campeonato, a seleção só existia para competições Fifa. Como era possível desenvolver o jogo?

A sorte é que essas mulheres sempre foram muito resilientes. E, “contra tudo e contra todos”, elas embarcaram para os Estados Unidos ainda um mês antes dos Jogos, para a preparação lá antes da estreia, com a certeza dos cartolas da CBF de que, logo após a primeira fase, elas estariam de volta. O Brasil estava no “grupo da morte”, seria impossível passar.

 

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Foram lá passear, pensavam. Mas como elas não brincam em serviço, fizeram um ótimo passeio – aproveitando muito bem os 15 dólares de diária que ganhavam e enchendo o ônibus de compras – e voltaram dando orgulho para o torcedor brasileiro.

“Lembro que teve um dia de folga que a gente foi no Wall Mart, as meninas fizeram a festa, o ônibus voltou lotado de bugiganga. A Fanta trouxe até uma bicicleta, fomos de pé no ônibus e os bancos cheios de tralha”, brincou Sissi, dando risada.

Dentro de campo, não houve nenhuma brincadeira. O Brasil enfrentaria a campeã mundial de 1995, Noruega, na estreia. Depois, o vice-campeão asiático, Japão. E, por último, a Alemanha, vice-campeã mundial que havia goleado a seleção por 6 a 1 em 1995.

Acervo O Globo

Contra as norueguesas, conseguimos o improvável: um empate por 2 a 2 com Pretinha marcando duas vezes. Aí pegamos o Japão num contexto que a imprensa nacional chamou de “possível vingança” – isso porque a seleção masculina havia acabado de perder para os japoneses nos Jogos. Resultado: 2 a 0 para nós com gols de Pretinha e Kátia Cilene. Para fechar, a Alemanha, o nosso bicho-papão.

Elas começaram abrindo o placar aos 4 minutos de jogo. Mas, desta vez, o Brasil conseguiu manter a cabeça no lugar e empatou com um belíssimo chute de Sissi de fora da área. Para calar os críticos – e, principalmente, os cartolas da CBF que não acreditavam na possibilidade de classificação.

“Cada coisa que a gente escutava. Eles não estavam nem aí, não acreditavam na gente. Tanto que já tinham passagem comprada de volta depois da primeira fase. Não esperavam que a gente pudesse classificar”, contou Sissi.

Ao término do jogo, o desabafo. Tafarel caiu no gramado e emocionada. Já Sissi, era só palavrão.

“Eu chorava copiosamente. Você segura a emoção até onde dá, depois daquele jogo, eu extravasei”, disse Tafa. “Tudo quanto é palavrão eu soltei naquele jogo. Eu lembro a maneira como elas zoaram a gente naquele Mundial (depois dos 6 a 1). Eu não ia deixar barato, não”, relatou a baiana arretada Sissi.

Acervo O Globo

Semifinal dramática

Com a classificação, o Brasil ganhou finalmente a chance de conhecer a Vila Olímpica. Os primeiros jogos foram realizados em outras cidades e só as semifinais e final aconteceriam na cidade-sede da Olimpíada, Atlanta. E, diante de mais de 64 mil pessoas nas arquibancadas no dia 28 de julho, a seleção feminina viveria seu maior calvário.

A começar que, antes mesmo do apito inicial, o Brasil por um momento ficou sem sua principal jogadora para a partida. Isso porque, contra a Alemanha, as brasileiras sofreram com o estilo de jogo forte e físico das adversárias, e Sissi foi o grande alvo delas. Com o tornozelo inchado, a nossa camisa 10 simplesmente não cabia na sua própria chuteira.

Sissi ficou com o tornozelo inchado depois do jogo contra as alemãs (Foto: Acervo Pessoal)

“Isso foi faltando umas 3h ou 4h para o jogo, a Sissi não conseguia fazer o pé entrar na chuteira. Ela tinha levado muita porrada, o tornozelo estava inchado e eu tive que sair para comprar uma chuteira com um número maior pra ela”, contou Romeu Castro, coordenador da seleção na época.

“Não tinha essa coisa de infiltração pra gente na época. Mas eu falei: eu vou jogar nem que seja com uma perna só. A gente tinha muita gente machucada, foi uma questão de superação mesmo”, disse Sissi.

E estava dando absolutamente tudo certo até os 37 minutos do segundo tempo. As chinesas abriram o placar, mas Roseli empatou e Pretinha virou no segundo tempo. Só que aí Sissi precisou ser substituída – ela não aguentava de dor. E aos 38, as chinesas empataram. Aos 45, elas viraram.

O baque foi grande, e a seleção chegou para a disputa do bronze com a Noruega destruída fisicamente e destroçada emocionalmente. Não deu para levar – 2 a 0 para elas.

O ‘prêmio’

Mesmo sem ter conseguido voltar com a medalha, a seleção feminina mostrou seu valor nos Jogos Olímpicos de Atlanta e deu a melhor resposta a todos aqueles olhares preconceituosos e desconfiados: gols e muito talento dentro de campo.

Para “premiar” esse resultado tão importante, a CBF preparou uma surpresa para elas: a volta pra casa seria no voo da seleção masculina. Era sempre assim, para eles, a recompensa vinha em dinheiro e reconhecimento, para elas, as migalhas.

Marcia Tafarel ao lado de Ronaldo no voo (Foto: Acervo Pessoal)

De toda forma, aquela seleção deixou um legado importante. Com o sucesso delas em Atlanta, a Sport Promotion (empresa que “bancou” a seleção feminina nos Jogos) decidiu ampliar o investimento e ofereceu contrato para todas as jogadoras da seleção (menos as que já tinham vínculo com o Vasco). Foi criada uma liga em 1997, o Campeonato Paulista (que não era disputado entre as mulheres desde 1987), e as atletas da seleção foram distribuídas entre os principais times – foi assim que Sissi vestiu a camisa do São Paulo, e Marcia Tafarel a do Corinthians. Houve até mesmo transmissão dos jogos na Band e no Sportv.

O mais importante é que foram essas mulheres que começaram a história que ganhará novos capítulos em Tóquio. Elas não serão esquecidas.

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