A primeira memória que Clara Albuquerque tem do futebol é emblemática: sua mãe indo para o estádio em Salvador num domingo, enquanto ela e o irmão ficavam sob os cuidados do pai.
“Eu pensava: para minha mãe deixar eu e meu irmão sem ela, é porque esse lugar deveria ser muito bom. Então eu comecei a ter essa ideia de que o estádio era um lugar maravilhoso mesmo”, contou ela às dibradoras.
A cena seria mais comum se fosse um pai indo a um jogo de futebol e deixando a mãe e os filhos em casa. Mas na família de Clara, todo mundo sempre foi fanático e aí havia um revezamento de quem ficava com as crianças (que ainda eram pequenas) para o outro ir ao estádio. A referência feminina tão próxima fez com que ela só percebesse que “futebol era coisa de homem” quando na escola os colegas estranhavam seu “conhecimento” sobre o jogo.
“Quando eu fui ficando mais velha, meu irmão me exibia para os amigos dele. Os amigos não sabiam algo, ele falava: minha irmã sabe tudo de futebol. Ele gostava que eu via jogos com ele”.
O amor pelo futebol, porém, nunca fez Clara pensar em trabalhar com ele. Talvez justamente por não ver nenhuma mulher fazendo isso na TV – a presença feminina no Jornalismo Esportivo ainda era rara -, ela automaticamente tenha “entendido” que aquele espaço não era mesmo para ela. Mas o acaso de um TCC acabou levando Clara a realizar os sonhos que ela nem sabia que poderia ter. Hoje, ela é correspondente do Esporte Interativo na Itália e passa o dia cobrindo jogos de Champions League e entrevistando craques como Cristiano Ronaldo – mas a caminhada até lá foi longa.
Futebol “para mulheres”
Estudando Jornalismo, Clara começou a estagiar na área de Cultura e Cidades e nem imaginava ir para Esportes. Mas no trabalho final da faculdade, ela queria fazer algo sobre aquilo que mais gostava: futebol. Na época, em 2005, ainda predominava uma ideia bastante estereotipada sobre as mulheres – era como se existisse apenas uma possibilidade para elas: gostar de moda, vertir-se de rosa e usar salto alto. Clara não tinha nenhuma dessas características, mas usou todas elas para escrever um livro sobre futebol “para mulheres”. O título não poderia ser outro: “A Linha da Bola: tudo o que as mulheres precisam saber sobre futebol, e os homens nunca souberam explicar”.
“Foi um caminho tortuoso, porque eu entrei na faculdade de Jornalismo e acho que nem cogitava a possibilidade de ser jornalista esportiva. Aí quando eu fui fazer meu TCC, decidi escrever sobre futebol. Eu vi que não tinha nenhum livro escrito por mulheres, nem pra mulheres, e naquele momento acho que fazia muito sentido”, contou.
“A ideia era trazer o mundo totalmente estereotipado da mulher para o mundo totalmente estereotipado do futebol. E unir esses dois mundos. A capa é toda rosa, a linguagem do livro brinca com moda, com conto de fadas. O livro era direcionado para as minhas amigas, que cresceram num mundo em que rosa é pra menina, azul é pro menino”.
Só que depois de anos trabalhando numa área completamente masculina, Clara reconhece que são justamente esses estereótipos sobre o que é “coisa de menina” e “coisa de menino” que devem ser quebrados – porque eles ajudam justamente a afastar as mulheres de espaços não considerados “femininos”, como se houvesse algum tipo de determinação biológica para os interesses de homens e mulheres.
“Hoje, com 36 anos, vários anos de carreira e do que eu vejo das próximas gerações, esse livro não faz nenhum sentido. Porque eram outros tempos. Na minha época, a gente foi criada para pensar que a mulher gosta de moda e o homem gosta de futebol. Essa associação hoje não faz mais sentido. Eu vejo quanto a gente, mesmo sem querer, reforçava esses estereótipos e acho que hoje eu faço um trabalho de me policiar pra não reforçar”.
‘O que é impedimento?’
O TCC de Clara Clara Albuquerque virou livro e foi publicado em 2007. Daí em diante, ela passou a ser convidada para participar de muitos programas esportivos na TV ou no rádio para falar sobre a obra. Nas entrevistas, a jornalista precisava sempre passar por um “teste de conhecimento” ao vivo.
“Eu era quase sabatinada para terem certeza de que eu entendia de futebol. A primeira pergunta não era a minha relação com o futebol ou por que eu decidi escrever o livro ou sobre o conteúdo do livro, a primeira pergunta era ‘ah, mas me dá escalação do Brasil de 1970’, ‘explica o que é impedimento’. As minhas primeiras perguntas eram sempre se eu entendia de futebol e não por que eu tinha escrito o livro”, contou Clara. https://www.youtube.com/embed/6ajO5IjrMVE
“Lembro que, na época, chegou certo momento que eu tinha coisas decoradas para responder, porque era sempre as mesmas coisas que me perguntavam”, disse.
O sucesso do livro – e talvez a surpresa que Clara causava nas pessoas por ser uma mulher falando com propriedade sobre futebol – fez com que ela recebesse convites para trabalhar na área. Foi colunista no jornal Correio da Bahia, estreou na TV com um quadro e depois foi comentarista de jogos do Campeonato Baiano e do Campeonato Brasileiro, primeiro pela TV Bahia (afiliada da Globo), depois pelo PFC e Sportv. Uma das mulheres pioneiras como comentarista de transmissão, Clara sofreu com comentários preconceituosos, mas também começou a entender a importância do que fazia ao ver mulheres se identificando com ela nos estádios.
“Acho que não tive a dimensão da importância, mas tive a dimensão da estranheza. Estava mais preocupada em fazer um bom trabalho do que na importância daquilo. Aos poucos, durante esse trabalho, quando eu comecei a receber a quantidade de mensagens de mulheres dizendo o quanto elas se sentiam felizes de me ver ali, eu comecei a perceber o quanto aquilo era representativo”.
Da Bahia à Europa
Depois da experiência como comentarista, Clara decidiu partir para uma nova aventura no Rio de Janeiro. Publicou mais livros sobre futebol – “Os Sem Copa” e “Os dez mais do Bahia” – e começou a trabalhar como apresentadora e comentarista no Esporte Interativo. Aí em 2017 viu a chance de ir para a Europa virar correspondente. Abraçou o novo desafio e foi viver sua primeira experiência como repórter em um país desconhecido.
“Minha vida mudou completamente em termos profissionais de rotina. A função era bem diferente pra mim. Aqui, eu cuido de todo o processo, desde a produção da pauta, parte técnica, câmera, foco, luz, áudio, a primeira edição. Então foi o maior desafio que eu já vivi na minha carreira porque eu tive que aprender tudo muito rápido”.
O desafio mexeu tanto com ela que, na véspera da estreia, Clara perdeu a voz. “Fui fazer Real Madrid x Napoli com a Tati Mantovani (correspondente do EI na Espanha). No dia anterior, perdi a voz. Eu nunca tinha perdido a voz em toda a minha vida. Fiquei fazendo exercício com a fono. No dia seguinte a voz estava rouca, não estava tão ruim. Mas passei o dia morrendo de medo que, na primeira cobertura, eu não fosse entrar no ar porque não tinha voz”.
Deu tudo certo no final, e a Clara realizou vários sonhos depois desse. Na primeira entrevista com Buffon, ela tremia tanto que o fio do microfone balançava. “Ele é o maior goleiro da história pra mim. Foi a primeira entrevista com um ídolo”, conta. Depois, quando Cristiano Ronaldo chegou, a rotina ficou ainda mais agitada. E os jogos históricos ficaram ainda mais frequentes.
“Não tem o que falar dele como jogador, não há como não admirar o profissional que ele é. Eu não tenho uma relação de idolatria com o Cristiano Ronaldo. Mas o 3 a 0 dele em cima do Atlético de Madri (jogo de volta das oitavas da Champions 2018-2019)…dos jogos que eu vi do campo, foi a maior atuação individual de um jogador numa partida.”
Se começou nessa carreira “por acaso”, Clara hoje virou referência e estreou até um curso para preparar novos correspondentes esportivos. Antes, ela não tinha ideia do que a presença dela ali poderia representar para as meninas e mulheres que a assistiam; agora ela tem plena consciência disso e quer abrir espaço para que mais venham depois dela.
“Não é sobre uma mulher, é sobre todas. Acho que o que mais mudou pra mim foi a consciência do meu papel. Aos poucos, eu fui entendendo que eu tinha um poder de representar essas mulheres, não apenas de fazer o meu trabalho. Quando recebo mensagem de menina do interior da Bahia e diz que me viu na televisão e que sonha em ser repórter esportiva, entendo a importância disso. Ela agora sabe que pode chegar lá também.”